segunda-feira, 26 de abril de 2021

21) O Chute Final

A esfera alva sobre o círculo branco. Os pés do italiano Roberto Baggio procuram se afastar da bola. Baggio suspende a cabeça para encarar o problema e descansa as mãos ao redor da barriga. Respira. Ante seus olhos, o goleiro, um tal de Taffarel.

Roberto Baggio quer atravessar o recém descoberto pegador de pênaltis — aquele jogador irregular do Reggiana, time modesto do mesmo país onde Baggio é sinônimo de ídolo. 

Já o menino, com seus 7 anos de idade, está sentado no chão de ardósia da sala de casa. Acompanha pela tevê de '14 e bombril na antena, junto dos irmãos e pais, a famosa disputa de pênaltis entre Brasil e Itália. É, claro, a final da Copa do Mundo de 1994, realizada no Rose Bowl, nos EUA.

O menino é morador da emergente cidade de Divinópolis, interior de Minas Gerais, no Brasil. Ele nada mais ama do que o futebol, e seu coração confirma o amor quando seus olhos nem piscam diante da tela chapiscada. Dali em diante o menino se tornará um fanático pela pelota. Fará campeonatos entre seus botões, escalará o desconhecido Ponte Preta de cor e seus aniversários terão balões coloridos como as cores do seu time do coração. 

Baggio precisa colocar a bola em um lugar entre o goleiro e os postes de metal. Um lugar que faça as redes balançarem assim como os torcedores do seu time. Um lugar que não transforme Taffarel em heroi — o mesmo goleiro insolente que já agarrou um pênalti mal batido de Massaro minutos antes. Roberto Baggio não pensa no menino. Por que o então maior jogador do mundo, ganhador da bola de Ouro do ano anterior, pensaria? Mas sabe que existem milhões à espera de seu derradeiro chute, seja em Divinópolis, na cidade de Roma ou nas cadeiras numeradas do estádio americano, o mesmo coliseu em que ele, Baggio, se prepara para se tornar ídolo ou — como uma moeda de duas caras lançadas ao ar pelo juiz — o vilão. 

O menino rói as unhas de ansiedade. As unhas de Baggio estão intactas; ele apenas se concentra no objetivo, aquilo que os ingleses não à toa deram o nome de Goal.

Como um ser onisciente, vindo do alto-falante da CCE, uma voz meio aveludada e rouca narra com emoção a seguinte frase: "...vai partir... ...VAI QUE É SUA, TAFFAREEEL! PARTIU! BATEU!..."

Segundos antes, Baggio corre até a bola. Taffarel se adianta, dando um passo e pulando para frente. Baggio chuta. Taffarel cai. A bola sobrevoa acima do travessão. A narração completa: "...CABÔÔÔ! CABÔÔÔ! ACABÔÔÔÔÔ! É TETRAAA! É TETRAAA! O BRASIIIIIIL É TETRA CAMPEÃÃO MUNDIAAAL DE FUTEBOOOL! O BRASIIIIL, VIIINTE QUATRO ANOS DEPOOOIS, É TETRA CAMPEÃO MUNDIAAAL DE FUTEBOOL!...".

Roberto Baggio não chegou a ouvir aquela frase. Depois do chute final, apenas deixou o queixo cair sobre o peito, como um Dadá Maravilha às avessas, sem encontrar a bola que justificasse o gesto. Não ouviu aquela frase gorda e emotiva que, para ele, seria um tremendo fastio. O que seus ouvidos desejaram? Bloquear, somente bloquear, como uma barreira feita por Pagliuca, a festa de arromba dos jogadores amarelos.

Porém, mais impactante do que a frase esfomeada do narrador brasileiro teria sido, ou o alto-falante da CCE quase a estourar, ou os abraços e as inúmeras reprises daquele chute em todos os telões do mundo; mais impactante do que o menino, agora homem, e com os olhos marejados, a escrever as lembranças daquele dia, foi e ainda é... o zumbido. O zumbido ainda atormenta Roberto Baggio. E já são quase trinta anos, agudo e penetrante, o zumbido em uniforme de insônia, vestido de entrevista, documentários, lembranças escabrosas.

Já o menino, mesmo com os problemas da vida adulta, nenhum zumbido capta. Seus pensamentos tão somente repetem: "É TETRA!".