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segunda-feira, 25 de maio de 2020

17) As chaves do entendimento abrem as portas da percepção?

No longínquo terceiro ano do ensino médio, 2005 dC, um amigo chamado Renato Amaral me emprestou um disco do Radiohead, o Hail To The Thief, e com ele tive uma linda viagem rumo ao desconhecido.

Hail to the thief ou Viagem ao desconhecido (com volta, só não sei pra onde)

Naquela época ouvia música de um jeito diferente, um jeitinho que tem voltado depois de uma década desatenta e negligente, uma maneira de ouvir com atenção, banda a banda, disco a disco, música a música, sem pressa, saboreando. Não existia esse lance de ouvir um single ou músicas picadas. Para se conhecer e saber se a banda era boa, precisava ouvir um disco inteiro, dois, três, toda a discografia. 

Ali, com os meus 18 anos, lembro de ouvir música ao acordar, colocando um disco pra tocar no micro system enquanto me aprontava pra aula. Esse disco tinha quer ser curtinho, de trinta minutos, no máximo. Depois, ouvia alguma coisa à tarde, geralmente bandas que mais amava porque sobrava tempo, podia dançar no quarto, tocar bateria imaginária, e depois, antes de (ou para) dormir, ouvia mais um disco. Era então a hora do Radiohead. 

O micro system dividia espaço comigo na cama e, aos primeiros sinais do meu cochilo, eu metia o dedão no off e colocava o aparelho pra desmaiar também. 
Mini System Philips AZ1030 - Conserto - YouTube
Porrã, tinha um desses, mas falsi, da CCE
De volta ao passado: saco o cd do saquinho (cd pirata), abro a tampinha do aparelho após acionar um botão côncavo, insiro – com a habilidade de um sommelier – a bolacha espelhada dentro do micro system, abaixo a tampa, dou o play. Toca a primeira música, que eu descubro qual é lendo a parte de trás do encarte (ou o que havia de encarte em um cd pirata), 2 + 2 = 5. Começa lentinha, lentinha, com aquela voz miúda e aguda (nem tão miúda e nem tão aguda como a da Sandy, mas chorosa), vai crescendo, crescendo aos pouquinhos, estoura, plot twist, musicão. Um rock, com elementos, melodias e timbres estranhos, mas um rock, guitarra e tal. 

Ainda estou acordado (um ótimo sinal, pois foi alguns anos depois que começaram as minhas insônias, que já estão se despedindo da minha vida, graças), a segunda música passa a tocar. Ainda não fazia ideia, mas seria uma das minhas preferidas da banda. Sit Down Stand Up também começa lentinha e vai crescendo, o crescimento é mais sutil que a anterior, degrau por degrau, mas de elementos mais estranhos, melodias e timbres que se misturam com música eletrônica. Não é um rock, o que é bem estranho, afinal eu deveria ouvir apenas rock, em 2005 sou um rockista, pô. 

A terceira, bem lentinha, e continuaria assim, beeeem len-ti-nha. Dormi nessa música.


Passei uma semana dormindo nela, como um fóbico passeando sobre o viaduto Santa Tereza, não conseguia atravessar a tal ponte. Até que desisti – que banda difícil. Devolvi o cd pro maninho Renato. 
Viaduto de Santa Teresa: tenha um encontro marcado com os arcos da ...
Obviamente um não fóbico.
Semanas depois apareceu um outro amigo, o da rua de cima, o Magrelo, que copiava vários discos, praticamente todas as bandas de rock que existiam, ele tinha tudo. Esse mesmo amigo me emprestou toda a discografia do Pearl Jam, que viria a ser a minha banda preferida até os vinte anos. Ainda acho o Riot Act o melhor disco, mas acabou ali. Esse amigo da rua de cima foi também quem me emprestou o The Bends e o OK Computer, e falou, se você não gostar do primeiro, tá tranquilo, mas se não gostar do segundo, acho que você nunca vai gostar da banda. Qual a banda? Radiohead.

Ouvi o primeiro, o The Bends (o segundo da carreira deles). Um disco bem simples com arranjos magros, de algumas canções que lembravam o U2. Gostei. Ouvia sempre, era calmo. Levei até pro Lucas ouvir e ele pontuou a semelhança com o U2. Como aquilo podia ser Radiohead e aquele outro disco também? O Pearl Jam tinha me ensinado sobre experimentação em alguns discos como o Vitalogy, No Code, ou em como bandas podem se modificar conforme os anos passam, mas me ensinara pouco. Até que deixei de lado o The Bends e fui atrás de encarar o outro disco, o OK Computer. Sem imaginar a pedrada que viria.

A primeira pedra caiu do espaço, costumam chamar isso de meteoro: “Airbag”. Achei foda, timbre bem louco da guitarra no riff principal. Ouvi a segunda música e minha cabeça saiu da Terra e foi para o espaço, explodindo. Achei o melhor disco do mundo por muito e muito tempo. Claro, depois de ouvir bastante esse disco, ver todos os clipes, ler sobre a banda, quis ouvir os outros. É aí que o Renato retorna à história, pedi a ele o Hail To The Thief de volta. Ouvi… ouvi tranquilo como uma nave. Entendi (esse verbo complexo) o disco, não dormi em nenhuma música e ainda permaneceu como o meu disco favorito da banda. Depois vieram outras pedradas, Kid A, Amnesiac (discaço com sobras da gravação do Kid A). Ouvi a banda por alguns anos até aparecer o In Rainbows, o primeiro disco deles que eu vi eles lançaram e que foi “doado” pelos integrantes da banda ao público. Um ótimo disco. Ouvi menos do que os outros, talvez minha cabeça já estivesse se encaminhando em direção a outras searas. Até que chegou o King Of Limbs. Ouvi uma vez ou duas; não desceu, achei um disco preguiçoso, parecia que a banda estava no fim, houveram rumores, Thom Yorke já estava lançando disco solo e disco com o Atom. Quando chegou o Moon Shaped Pool eu já não tinha qualquer interesse na banda, ouvi uma música ou duas. Pareciam músicas covers do Radiohead, vai ver eram. Essa mesma impressão eu tive com os novos discos do Pearl Jam e do Red Hot (que hoje considero uma das bandas mais chatas que existe, e eu era muito fã na adolescência). Não desmereço nenhuma dessas bandas, apenas não são mais relevantes para mim neste momento, mas foram demais, grandes amigas. Enfim, foi depois de algum esforço que minha cabeça aceitou o Radiohead, e eu fui capaz de compreender a sua música.

Just (singolo) - Wikipedia
Videoclip de "Just". Resumindo, eu estou bem.
Quando a sua cabeça aceita algo? Olha, sempre tentei ler Dom Quixote, sempre achei dificílimo. Nunca entrava na minha cabeça, larguei inúmeras vezes depois de “ler” as primeiras páginas. Dias desses peguei só pra passar o tempo enquanto não começava a novela (dei pra assistir na quarentena). A leitura simplesmente fluiu e está fluindo. Depois de algumas tentativas frustradas, a leitura desceu redonda (não como a Skol, mas como a Heineken) como se eu tivesse compreendido, absorvido, psicografado o livro. Essa absorção tem algo de maior do que o simples entender, é outro entender, é a cebola interminável. Essa nova leitura me induziu ao uso de chaves de entendimento, saca só. Usei uma das chaves para entender que o estilo pomposo do texto sempre teve a ver com a paródia de romances de cavalaria, fazia parte do humor do livro, Quixote é um livro de humor. Essa era uma das chaves do entendimento. Talvez a principal, ou a necessária. A chave que eu precisava para abrir a pesadíssima porta verbal. Com o tempo a gente vai se parecendo com leões de chácara, portadores de chaves de leitura; a paciência e a persistência, inclusive, são chaves de ouro. 

Então, quando um livro, um disco, um filme te aceita? Quando você pode entrar? Quando ele entra em você? O meu diretor favorito se chama David Cronenberg. E um dos meus escritores favoritos se chama William Burroughs. Em 1994, Cronenberg fez um filme inspirado no livro Naked Lunch, do Burroughs – pra quê, preciso ver esse filme, provavelmente foi o que eu disse. Fui assistir e achei dificílimo. Não entendia o que acontecia, pra onde a história caminhava, eu me encontrava perdido como se fosse Perseu sem o fio de Ariadne. Achando geniais a fotografia, a trilha, os efeitos visuais, mas a história me cansava porque simplesmente não a entendia. Abandonei várias vezes o filme. Até que um dia voltei a assistir. Tem isso também. Por que assistir de novo se não colou da primeira vez? Bem, não sei. Talvez a gente tenha que usar as chaves, elas não podem ficar no bolso. Isso até me lembra um conto da Lygia Fagundes Telles, acho que se chama Os Objetos, não sei, só sei que em determinada hora do conto não me lembro se o narrador ou o personagem (ou seria narrador personagem?) se questiona – uma faca só tem função de existir se cravada no peito. Quis dizer o seguinte: enquanto a faca está adormecida no faqueiro, ela não existe. Uma chave no bolso não tem por quê. Uma chave para abrir uma leitura é uma chave mestra, uma chave que funciona, que encontrou seu lugar no mundo.

Forgotten Cronenberg: Naked Lunch - Byl Holte - Medium
Naked Lunch, o filme. Queria essa máquina.
Depois de usar a chave da insistência, descobri a história do filme: simples, com um fio narrativo tranquilo de acompanhar, as paranoias que se bifurcavam do centro da trama sempre retornavam à ela, à espinha dorsal da história. O filme então desceu como mel e continuei, e continuo durante esse anos todos, tendo o Cronenberg como o meu favorito. Parece que todas as minhas chaves cabem perfeitamente nas suas portas de percepção, ou seus filmes atravessam facilmente as minhas portas mentais. 

Quais chaves você carrega no bolso? Quais portas precisam ser abertas?

quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

14) Um Jeito de Fazer Música

1. A chuva trouxe a água e levou a minha internet. Como sou desesperado sem internet. Assim que a conexão cai, começo a pensar no que fazer.

2. Minha primeira atitude é dar uma volta pela casa, sem destino certo, talvez abrir a geladeira, fitar as prateleiras vazias, a maçã murcha, o galão de água com cheiro de gengiva.

3. Depois vou para o violão. O violão funciona para mim como um refúgio, o meu não-lugar, o meu espaço no tempo. O tempo restaurado.

4. Começo por balbuciar alguns acordes, umas melodias na garganta. Vou fuçando as possibilidades harmônicas, rítmicas, melódicas, até encontrar algo que nunca tenha me visitado antes.

5. É quase de praxe começar pelo acorde de Lá menor. É um dos meus vícios. Curto também o Ré menor. O Si menor. Caso não seja menor, gosto do Sol.

6. Quando pinta uma melodia na minha garganta, que escape ao baixo do acorde, enxergo ali a porta de entrada; tenho nas mãos as chaves, ou as cordas do violão, ou cordas vocais, e minha cabeça vai se chafundando no inconsciente, nas ideias e assuntos que eu gostaria de falar (que eu nem sei, até aí, se gostaria), a melodia e o ritmo também darão o tom do discurso: pode ser que eu fale sobre mim, sobre algo que tenha acontecido comigo, sobre alguém, uma situação, uma crônica.

7. Cada vez mais busco a simplicidade, as palavras que veem sem suor, sem firula, o texto completamente oral, assim como as pessoas se comunicam.


8. Encontro a letra, ou melhor: o primeiro verso. O primeiro verso dá o tom. A partir daí construo os próximos. Dois acordes, três. Raramente, quatro. Tenho feito músicas muito curtas, de 1 minuto, 30 segundos. Às vezes três versos são suficientes, dois. Um verso potente, caso aconteça, pode ser o ideal.

9. Daí repito essa estrutura por uns 10, 20 minutos; deixando que meu corpo, meus pensamentos, a levada, o ritmo, a ocasião e o acaso decidam para onde a música deva ir. Às vezes pinta um outro verso, um novo acorde, uma mudança de tom.

10. Depois da música pronta, gosto de pensar no próximo passo: tipo, o que farei agora?

11. Gravar, uai. Utilizo um microfone ZOOM, desses de gravar cinema. Gravo direto nele, cantando todas essas repetições, no violão, ou no tecladinho Kashima, 10 minutos de gravação, dela usarei apenas 1 minuto.

12. No meio do registro, repetindo a música incessantemente, começo a me sentir mais à vontade, solto, relaxado  é mais do que necessário para alguém que não tem costume de cantar e desafina com a mesma facilidade que formigas têm de invetarem filas.

13. Recorto a melhor parte, insiro num programa de vídeo  tenho usado há mais de 4 anos o Sony Vegas Pro 11. Lanço a música na track, caço elementos na internet (ou que já estejam no meu pc; coisa que acontece se a conexão tiver desabado) que corroborem com a minha concepção de música Alonima. Os elementos passam por efeitos sonoros de filmes de ficção científica e terror, falas de monstros, articulações robóticas, sons de naves espaciais, coisas banais como passos de caminhada, aberturas de portas, barulhos de ventos, pios de pássaros. Daí crio uma mix bem simples, tosca, DIY, desses elementos.

14. Penso no clipe; ele deve ter no máximo 1 minuto já que a minha intenção é postá-lo no Instagram. Posso seguir dois caminhos para fazê-lo. O primeiro deles é pensar na história: como será, se uma narrativa linear, tal, e a partir daí tentar esboçá-la numa espécie de pré-roteiro, já pensando em como tudo se resolveria com as ferramentas que tenho  inclusive bastante precárias, mas que dou o maior valor por serem os principais responsáveis pela linguagem.


15. A segunda opção, e a que mais tem dado certo, é coletar material durante os dias, sem pensar muito que destinos eles terão. Pode ser uma filmagem enquanto estou no ônibus, uma leitura de um livro, um desenho criado, filmagens e fotos caseiras.

16. Tendo esses elementos em mãos, começo a criar o vídeo sem saber exatamente o destino, apenas entro no banco de dados Alonimo, coleto os materiais que juntei durante a vida, lanço-os na track de vídeo do Sony Vegas, vou trabalhando as imagens.

17. Existe um padrão de títulos com três letras, que sempre acompanha o vídeo, além do padrão de tempo, um minuto de música e vídeo, no máximo, e o padrão de elementos eletrônicos que mencionei antes, e agora, uso bastante os mesmos efeitos combinados com a cor natural e a estrutura também natural dos elementos coletados. Esperando que eles deem o tom do produto final.

18. Renderizo e já subo para o Insta, caso a internet venha à tona, e costuma acontecer. Subo independente da hora e do dia, geralmente na madruga.

19. A conclusão do trabalho me traz alegria e também uma pequena tristeza, pois o lance é o processo; o processo gera um tesão quase incontrolável, onde só bebo água, canto, toco, gravo, edito, pesco alguns biscoitos. Mas o incansável está sempre à cata de laçar outros desejos, músicas, textos, filmes, orgasmos. 

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

13) Júpiter Maçã ou A Arte do Respeito Próprio

Estava eu assistindo a um programa pelo Youtube, um programa já extinto, chamado Musikaos, exibido pela TV Cultura em passado recente, apresentado por Gastão Moreira, jornalista cultural de quem eu tenho grande admiração.

Esse moço é o Júpiter.
Gastão, nos dias atuais, toca um canal no Youtube chamado Kazagastão, o KZG. Foi em uma das playlists do canal  ou nos vídeos que o youtube relaciona, não lembro muito bem  que descobri um arquivo de vídeo do Musikaos em que Júpiter Maçã, ou na fase artística na qual foi gravado o vídeo, Jupiter Apple, apresentou-se com duas músicas e deu uma breve entrevista. E foi nas poucas palavras ditas pelo músico, e não nas cantadas, que me liguei, a ponto de pensar sobre aquilo a madrugada inteira, inclusive depois de acordar.

Quer dizer, algo que me colocou a escrever, sentar a bunda e escrever sobre. O lance foi simples, entre a primeira música e a última, pois só tocaram duas, Gastão partiu para a entrevista munido de pequenas perguntas (em sentido quantitativo) e obteve várias grandes respostas (em sentido qualitativo). Em uma delas, que foi mais ou menos assim — Júpiter, você toca vários instrumentos, domina o contrabaixo, gravou um disco inteiro sozinho, você teve professores ou sempre foi um autodidata?

Este é o Gastão. Não deixe de assistir ao canal Kazagastão, no Youtube.
Eu sempre soube de Júpiter como um autodidata, fiquei esperando a sua resposta, seria sucinta, "Sim, sou um autodidata", mas ele respondeu outra coisa, com aquele sotaque gringo e gaúcho — Não, tive professores. John Lennon, Harrison, Syd Barret.

A resposta arrancou sorriso meu e do entrevistador em planos temporais distintos. Para selar com cera vermelha, Gastão levantou:
— Você é um cara que teve muitas fases, cantou blues, folk, rock and roll, cantou em português, agora em inglês, você leva a sério essas diferentes fases, não é?
Júpiter arrematou:
— Se eu levo a sério as minhas fases? Sim, eu me respeito.
Discaço.
E é este o ponto. Respeito próprio. Essa coisa do, Sim, eu me respeito, me fez refletir tanto sobre o respeito próprio, que... Putz. Algumas poucas e insistentes perguntas povoaram minha cabeça: quando você deixou de fazer algo que queria por algum motivo, por exemplo, por medo? Por julgar não ter tempo. Quantos poemas bons você deixou de criar ou letras de música porque não teve coragem de dizer o que pensava? Por que se preocupou com quem leria, com a cena musical da sua cidade? Quantos livros engavetados. Quantas vezes foi omisso a ponto de não dizer aquilo que pensa do mundo, dos parentes, dos amigos, da televisão, dos seus amores? Tudo por desrespeito próprio, eu aposto.

A arte do respeito próprio exige confiança. Desafio, portanto, dos mais difíceis. Não ceder. O simples gostar do que você gosta, relacionar-se com quem você gosta. Estar próximo e trabalhar para aquilo que você ama. Errar. Considerar suas motivações, seus pensamentos, seus desejos. Aqueles mais absurdos. Suas fases, a infância, a adolescência. A raiva, o ódio, o amor, a carência, o ciúme. A paranoia.

Júpiter manda joia.
Escrevo isto daqui enquanto me vem toda a discografia do Júpiter. Uma obra de liberdade, de ambição. "Sim, eu me respeito". Gastão anuncia a banda pela última vez naquele dia, Júpiter toca a última música, então do trabalho posterior, o Hisscivilization, e deixa um cara em Belo Horizonte sem dormir.