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segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

20) Caminhar não leva a lugar nenhum

É justamente a infinitude que nos interessa ao caminhar. Não ter um destino: alguém levantando uma placa de papelão com o nosso nome rabiscado em meio a um aeroporto infestado de gente. Não ter uma chegada: um pódio dividido em três categorias de vencedores. Não ter um porto: um solo de areia, palmeiras e vendedores de coco que nos atraquem. Caminhar – desculpe a indecência – não leva a lugar nenhum.

Caminhar elide sujeito e objeto. (Talvez algum poeta tenha dito algo parecido). Caminhar é (atente ao tempo verbal) presença. Pelos menos o caminhar de que falo. Aquele sem dívidas a serem quitadas com a barriguinha. Sem pódio de chegada ou beijo de namorada. (Sim, um letrista falou). Caminhar por caminhar, para se reconhecer.

Comecei a manifestar esse caminhar quando ainda o encarava como uma maneira de economizar o dinheiro da passagem de ônibus de ida à escola para comprar cds do Pearl Jam; banda que me fascinava na adolescência e que fazia de seus discos obras-primas gráficas. Ia do Caiçara (onde ficava a escola) até o Serrano (onde eu morava) apenas guiado pelos meus pés; e, sim, tinha um destino. Até dois. Chegar no Serrano vivo a cada dia. Depois de uma semana, uma semana e meia, ter o dinheiro para comprar o cd.

Depois esse caminhar começou a surgir em momentos em que eu precisava conversar com um amigo. Aí eu convidava alguém, nós comprávamos um Chapinha e dá-lhe pernas até a Lagoa da Pampulha. Apesar de parar na Lagoa, não era em si um destino, um objetivo. O objetivo era a conversa. Tanto a caminhada como a lagoa eram trajetos.

Até que (já naquela época) as pessoas não tinham mais tempo e nem sempre havia um amigo, e aí o trajeto se transformava em companhia. E o destino, o objetivo já não tinha importância. A importância morava nos pés em movimento. Nos olhos a verem as coisas. Nas narinas a sentirem o cheiro enquanto ouvidos percebiam movimentos, sons próximos, sons distantes.

Tanto feliz como triste, caminhava. Uma vez vi um documentário na tevê aberta sobre andarilhos. Como é de costume desses programas, metade de tela era de entrevistas com os andarilhos, metade com "especialistas". E os especialistas diziam que quem tinha como objetivo na vida o andar, era alguém sem rumo. De início pensei que eu não tinha rumo nada vida e cheguei a comentar com uma amiga essa descoberta. Por fim tive certeza de que não tinha rumo na vida... e tudo bem.

O "tudo bem" surgiu com mais força depois de descobrir a meditação andando. Para os budistas da escola zen (ou chan, se for chinesa) o caminhar sem meta é uma das práticas meditativas. Eles praticam em uma sala, e dão o nome de kinhin, mas também praticam em ambientes externos. E nos últimos dias decidi praticá-la novamente. Para isso tirei da estante um livro do Thich Nhat Hanh, Meditação Andando. Desse monge, na Netflix, até um mês atrás tinha um documentário sobre seu mosteiro, o Plum Village, na França. É uma pena que tiraram; pelo menos consegui assistir três vezes.

A meditação andando contempla esse aspecto de não ter meta enquanto se caminha. Não querer destino. Essa nossa obsessão por resultados traz também muitas frustrações. Porque, simplesmente, não podemos ter tudo o que desejamos. Quase sempre não chegaremos ao pódio. O real então se mostra não é nem no começo, nem no fim, mas no meio da... (eu sei, eu sei que você já conhece essa frase, deixa eu só terminar) ...travessia.

domingo, 10 de janeiro de 2021

19) Três Corações

Prisão de Alcatraz

Há coração escondido pelas costelas como se estas fossem grades de uma prisão de segurança máxima.

Há coração menos preocupado, que sai pelo buraco da fechadura enquanto a chave da porta se perdeu nos bolsos daquele short no fundo do cesto.

Há coração que deixa a porta escancarada e se entrega entusiasmado pelo mundo como se visitasse diariamente as pontes do rio Sena.

O primeiro só sai uma horinha por dia, para tomar banho de sol. Se segura ao máximo para não falar o que pensa, afinal pode ser retalhado. E, por esconder os desejos na garganta, está sempre com azia, com dores no estômago, tristezas sem porquês e olhando para os próprios defeitos como se fossem muros gigantes protegidos por arames farpados. 

O segundo bate forte quando o narrador grita gol, mas não tão forte que vá fazer o coração vizinho bater o interfone ou aquele gancho para a polícia. Derrama seu amor por pessoas próximas, os amigos e as amigas, namorados e namoradas; pelos pais ainda derrama amor em conta-gotas, em datas comemorativas, e acredita que a queimação do estômago seja herdeira do excesso de pernil comido no natal.

O terceiro bate forte tanto na arquibancada de um campeonato de escola quanto na primeira fila de um show da Ivete. Tem sempre uma história para contar na ceia e nunca abaixa os olhos para ver se está escapando pelas pernas. Não reclama de dor no estômago, porque nunca teve, e se pergunta "o que é estomazil?", deixando todos à mesa com a goela em chamas, desacreditados que ainda existam seres que não deram nenhuma bolinha num comprimido desses.

Tem coração que consegue dar uma voltinha no quarteirão, mas de tornozeleira. Vai até a esquina mais próxima, olha para todos os cantos, assustado, com medo de que o descubram fugindo, volta rápido para dentro de si, passa a noite inteira com insônia, dorme duas horinhas e acorda amedrontado com a autocobrança enroscada na própria canela.

Tem coração que dorme uma noite de sono mais ou menos tranquila, e só começa a bater forte quando tem sonhos com os pais em diversas situações, tanto ruins como boas. Acorda com a ajuda do despertador entre 9 e 10 da manhã, ainda sonolento, e chega quase sempre atrasado ao trabalho, com as desculpas querendo sair pela boca, mas controlada no centro da garganta.

Tem coração que dorme só de encostar a orelha no travesseiro. Acorda às oito horas, longe de qualquer ressaca moral, pronto para ir ao psicólogo uma única e última vez, só por curiosidade, já que pensou seguir a profissão de psicanalista – afinal gosta de gente. 

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

11) Caronas da UFMG ou Elivelton*, O Cara de Óculos do Carro Vermelho

Ele apareceu de carro vermelho. Coisa ainda mais rara: em duas sinalizadas minhas, lá estava o carro vermelho encostando. Antes de eu abaixar a cabeça e falar para onde iria, cumprimentei o cara com um beleza. Ele falou, entra aí. Pra onde cê vai, me perguntou. Pra praça de serviços. Ok.

É, esse carro é verde. Nada a ver.
Uma garota aprontava-se para entrar no carro conosco, quando ele disse que não cabia. O banco da frente é difícil de descer, só cabe um, infelizmente, emendou.

Pelo caminho de pedras entre a Faculdade de Educação Física e Terapia Ocupacional, em que os carros mal passam e se ouve mal quem fala enquanto guia o volante, foi que o Elivelton passou os pneus e também a contar a história de uma outra carona que ele havia dado. 

— Então, esses dias, coisa de uma semana atrás, eu tava subindo aqui por esse caminho e vi um cara correndo apressado, muita pressa, meio gordinho assim, sabe? Parei pra perguntar... ou, cê quer uma carona? Não é que o cara me olhou e deve ter pensado, putz, esse cara adivinhou!

Contando alegre como um lagarto ao sol. Eu ouvia sua história pelos cotovelos. Ele prosseguia através dos óculos.

Tenho a impressão que este é mais verde ainda.
— Pra onde cê tá indo, o cara me perguntou, tô saindo pela Carlos Luz. O cara disse que tava atrasado pro trabalho, que trabalhava na Gontijo. Falei pra ele que ia passar por lá. Cê tá brincando? Sério. Nossa, moço, cê pode me deixar lá? Claro. Não é que deixei o cara lá? Na porta do trabalho dele?

Deixou. E pelo visto como se tivesse nascido para tal.

— Quer dizer, o cara tava atrasado, não sei, tinha perdido um ônibus, o segundo ônibus tinha estragado, e ia subir essa avenidona toda aqui, correndo. Apareci na hora certa. No lugar certo. Acabou chegando antes do previsto e do imprevisto. Muito bom, muito bom.

E riu.

Assim que ele apertou o ponto final da história com esse duplo "muito bom", as pedras deram o tchau, e agora eu poderia ouvir de forma clara outra contação.

Me divertia com o Elivelton, ele, porém, parecia não gostar do asfalto, não para contar histórias.

Do bandejão até a praça de serviços o silêncio instalou-se no carro como se os vidros não estivessem nas portas mas entre nós. Paramos na praça. Agradeci. Ele deu um tchau agradável.

Outra história não viria. A que ele me contou correspondia à história-síntese, que talvez conte a todos que junto dele atravesse o caminho das pedras.

*nome fictício

terça-feira, 24 de outubro de 2017

10) Jota Jota e a Bicicleta ou Um Amigo Entre Tantos Colegas

Fuçando os meus parafusos e perguntando aos funcionários que trabalham na minha cabeça (sei que vocês os conhecem, um misto de arquivistas desorganizados e biógrafos auto-ficcionais), fiquei a par de saber o que é uma bicicleta.

"Senhor Diogo". Os meus funcionários me chamam assim, uma herança da hierarquia inútil. "Uma bicicleta é um veículo de duas rodas, por isso tem esse 'Bi'". Depois dessa pontual explicação, eu entendi, e não carregava mais dúvidas na minha garupa mental.

O que os meus funcionários não sabiam dizer é, quem ou que é Jota Jota? Para esse entendimento deixei-os de folga curtindo uma praia no sul da Bahia.

Conheci Jota Jota, ainda sob a alcunha de Geraldão, em meados de 2005, não sei.

Eu tinha uma banda, Playmobils, ele tinha outra, 4annex. Num dia louco aí, a gente dividiu o palco de um comício de um então vereador cego daqui de Beagá.

O 4annex era uma banda de hardpunkcore, sei lá, essas conjugações aí que o pessoal inventa, que tocava canções autorais em inglês. Tocar canção autoral era uma puta responsa. Eu não conhecia três ou quatro bandas naquela época, com uma faixa etária dos músicos entre 15 e 17 anos, que fazia isso. Certo, mas o que deixava o pessoal de cabelo com gel, era o tal do baterista. O baterista vocês já sabem, o baterista deles era, óbvio, o John Bonham. 

Mentira, Geraldão é o seu nome.

O Geraldão tocava como toca alguém que é Keith Moon e Dave Grohl ao mesmo tempo, mas com precisão. A precisão era incrível. Depois de um tum-tá-tum-tá veloz, ele conseguia, com a tranquilidade de um gorila, cair no mais suave relaxamento sonoro. Aliás, o que eu me lembro do 4annex é essa justaposição entre o frenético e o calmo, muito pelas baquetas do Geraldão.

O tempo passou, as crianças cresceram, o vereador cego virou deputado, mas não recuperou a vista. Fui trombar com o Geraldão coisa de 7 anos ou mais depois. E desse encontro eu me lembro. Ele sentou na batera do Castelinho, a Pretinha (antiga vocalista do 4annex) sentou num banquinho com o violão nas mãos, e eu, de baixo em riste, suspendi os ouvidos, pronto, daí sapecamos um som.

Depois eu fui ter uma banda com a Pretinha, e o Geraldão foi ter uma banda com o Bil (que tocava comigo nos Playmobils e que também faria parte da banda com a Pretinha).

O segundo encontro antológico diz respeito a um macarrão com camarão e uma garrafa de Black Label. 

Meu primeiro contato com o uísque foi bêbado, vomitável, mas bastante agradável. Descobri uma bebida que me deixava com o cérebro aceso. Ótima pra refrescar as piadas inteligentes. Dali pra frente, junto da Paulinha, eu teria pessoas com quem trocar uma ideia fina e amaciar uns gatos.

As pessoas também chamavam o Geraldão, vulgo Tiago, de J.J., no inglês. Eu abrasileirei pra Jota Jota, desde então é assim.

Agora a bicicleta e o Jota Jota se unem, pois o último me presenteou algumas vezes nesta vida curta que chega aos trinta anos. Entre camisas, bermudas, colagens, baralhos, videogames e chorume pra fazer planta crescer, ele me veio dessa vez com uma bicicleta: toma, Aloni, é sua.

Descobri que o pneu dianteiro, visivelmente furado, enganou o meu modo de ver as coisas, pois furado ele não estava. Demorou pra encher de tão vazio, mas serviu como cheio quando precisei ir até a Igrejinha dar uma volta hoje à noite.

Fui cauteloso, meio pelas beiradas como o pedal esquerdo que está pela metade.

Durante a pedalada saquei que se corre realmente daqui da república onde moro pra lá, não o contrário, já que esse é o sentido do vento, na volta eu o senti contra mim, e senti sozinho pois ninguém apareceu pela minha traseira.

Volto a pedalar todas as noites, esse álibi, substituto também saudável de minhas caminhadas a esmo por Beagá. Obrigado, Jota Jota, o presente com dez dias de antecedência e ainda na pós adolescência.

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

8) 8101 ou Uma Gota Fora do Oceano

Ela sacou da mochila um livro e perguntou se eu já tinha lido aquele exemplar que a sua mão agora mordia.

- Esse eu não li, mas li um outro dele. O nome é “Um rio chamado tempo e uma casa chamada terra”.
- É a primeira vez que o leio. Eu curto. Ele brinca com as palavras.

Me falou isso como se tivesse descoberto a América. Estou cansado de autores que “brincam” com as palavras. Brincam tanto que esquecem de dizer algo. Literatura não é playground.

Omiti minha opinião, apenas emendei que preferia o Guimarães Rosa. 

Ela, indo para o Recife fazer mestrado. Eu, olhando mais para a sua boca do que seus olhos, quando dos lábios ouço um...

- Você é uma pessoa séria, Leandro.
- Eu?
- É. Você se considera uma pessoa séria?
- Acho que não.
- Você aceita qualquer tipo de brincadeira?
- Aceito.

Não respondi assim, rápido, como você leu. Fiquei pensando. O que seria uma pessoa séria? Eu sabia dizer até o momento dela me perguntar.

Depois me disse que ela, sim, não aceitava qualquer tipo de brincadeira, era a tal séria e por isso “sou desse jeito”. E sorriu.

De que jeito? Com aqueles óculos engraçados que mal cabiam nos olhos? Eu nunca tinha a visto como uma pessoa séria. Até porque eu não sabia o que era a tal seriedade.

“Sou desse jeito”, pediu para que lhe enviasse e-mails, desceu do ônibus e foi para o Recife.

Assim que eu chegasse ao trabalho - pois era pra lá que estava indo, não para Pernambuco -, procuraria no dicionário virtual a maldita palavra "sério".

Pessoa séria é para adultos. Eu ainda conservo aquela velha história de não confiar em ninguém com mais de trinta anos. A questão é que eu já tenho trinta anos. E dentro de mim já excluo os jovens como parâmetro de confiança. Tenho todos os requisitos para comprar um relógio e manter o cabelo aparado. Eu começo a me excluir, então. Tudo para me integrar.


É aquela velha história – acho que do zen-budismo -, uma gota fora do oceano é apenas uma gota. Uma gota no oceano... é oceano.   


quinta-feira, 17 de agosto de 2017

3) Há Poesia nas Planilhas do Excel

Nunca imaginei que eu, uma pessoa tão subjetiva, sem qualquer senso prático, pudesse se dar tão bem com o Excel. Há um ano, me enfiei dentro de uma repartição pública para organizar um arquivo composto por processos financeiros.

Meus dedos, tão acostumados a preencher laudas de ficção no Word, tiveram de se familiarizar com planilhas complexas e recheadas de contratos, editais e recursos humanos. Se aos 19 anos eu me apaixonei por Kafka, aos 30 eu o compreendo como nunca. O absurdo não tem seis patas e nem anda pelas paredes, nem é um macaco que relata uma transformação pessoal para uma academia.
O absurdo é a própria academia a quem o relato é dado. Eu, um ser humano, com telencéfalo altamente desenvolvido e polegar opositor, não me atinei sobre a minha própria metamorfose burocrática. Dia a dia remexo o absurdo em pastas suspensas além de tramitá-lo às repartições vizinhas. Será que os irmãos Campos conheciam a poesia concreta dessa argamassa administrativa? Tudo isso para dizer que não apenas me tornei prolixo e desnecessário como este texto, a academia e as repartições, como agora as planilhas preenchidas do Excel são os meus novos sonetos.

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

2) Menino tenta imitar Super-homem e consegue!

Superman (George Reeves)
Cancelei minhas assinaturas de revistas e jornais para assinar um periódico diário de Ficção. Agora, todos os dias, recebo manchetes imperdíveis sobre coisas que não existem. Ontem, por exemplo, 15 do 7 de 1900 e 40 e 10, a manchete estampada na capa dizia: "Menino tenta imitar Super-homem e consegue!". Consumi ansioso a matéria que, resumindo, narrava um pulo sensato (era uma criança) pela janela do décimo primeiro andar de um apartamento no Barro Preto. O menino passa bem. E disse que não voltará antes de ter comido pelo menos metade dos algodões celestes.