Algumas aulas são chatas, aborrecidas e apenas tempo perdido, enquanto outras tecem o improvável e podem mudar a vida de alguém.
À minha cabeça surgem duas aulas inesquecíveis. A primeira foi uma aula de geografia, no sexto ano do fundamental, lecionada pelo alto e esguio professor Kléber, o Klebão. Ele era um sujeito ríspido em sala, de cortadas ferozes feito atacante de vôlei verbal, quase indefensável.
Uma vez, porém, Klebão pediu que fizéssemos um "para casa", uma redação que discorresse (lembro dessa palavra em especial) sobre a chegada dos portugas neste território ainda não chamado Brasil.
Fiz o para casa e o apresentei na aula seguinte. Depois disso nunca mais me esqueci dele, do Klebão, e já com treze anos passei a entender o que eu, Diogo, faria aqui neste mundo, e devo parte dessa descoberta ao ríspido professor de Geografia. Conto sobre esse dia em um texto que se chama Klebão, o pontapé narrativo.
A outra aula inesquecível aconteceu na graduação em Letras, lá em 2011. Uma professora, de maneira muito simples, mudou meu jeito de olhar pinturas e ler poesia. Foi a professora Myriam. Na primeira aula de teoria literária II, ela colocou sobre a parede branca um quadro do Paul Klee e posteriormente algumas estrofes do Barco Ébrio, de Rimbaud.
Primeiro ela pediu que olhássemos, durante um tempo, para o quadro de Klee. Se quiser fazer isso também, seria legal.
E ali nós ficamos. Olhando cada quadradinho, cada cor desse quadro, que tem um nome lindo: Som Antigo. Em seguida ela pediu que lêssemos algumas estrofes do Barco Ébrio, abaixo com tradução de Ivo Barroso.
Livre, a fumar, surgindo entre as brumas violetas,
Eu que rasguei os rúbeos céus qual muro hostil
Que ostentasse, iguaria invulgar aos bons poetas,
Os líquenes do sol e as excreções do anil;
Que ia, de lúnulas elétricas manchado,
Prancha doida, a arrastar hipocampos servis,
Quando o verão baixava a golpes de cajado
O céu ultramarino em árdegos funis.
Depois Myriam se levantou de sua cadeira e pediu que comparássemos o quadro com o poema, quais semelhanças existiam entre eles?
Daí que eu não conseguia enxergar nada que pudesse se coincidir. Até porque não entendia muito bem o que Rimbauzinho queria dizer.
Aos poucos, bem nas miudezas, a professora foi nos explicando. Primeiro a apontar a estrutura do quadro: os quadrados menores dentro de quadrados maiores, e fazendo uma ligação direta com os conjuntos de quatro versos que seguiam uma métrica dentro das estrofes.
Depois apontou aqueles quadradinhos que se repetiam em determinados pontos, e fez uma ligação com as rimas e as sílabas poéticas do poema*.
Aí a professora voltava para o quadro de Klee e apontava nele as diferentes tonalidades, e ia para o poema e mostrava as cores em excesso: "brumas violetas, rúbeos céus, excreções do anil". Além de todas as imagens que também eram muito coloridas: "Quando o verão baixava a golpes de cajado", enfim, uma chuva de sentidos, imagens e sons (esse poema dá água na boca).
Essa aula, no fundo bem simples, fez a minha cabeça explodir e dar um salto a mais. Fez eu perder o preconceito com poemas rimados e de séculos que não eram o XX, fez eu descobrir vários outros universos, desatarraxar parafusos mentais.
Depois dessa aula comecei a ler poesia bem devagar, passando por todas as "cores" possíveis de um poema e, por extensão, as cores do mundo.
*Resumindo, sílabas poéticas são as fortes e as fracas: em "QUAN-do-o veRÃO", as tônicas são fortes, e as fracas geralmente se ligam a outras fracas, então você conta "do" + "o" como uma sílaba somente, e se o verso terminar em sílaba fraca, você não a conta. Dessa forma Ivo traduziu os poemas em dodecassílabos, versos com doze sílabas poéticas. Posso estar falando errado, qualquer coisa vocês me corrijam.