No longínquo terceiro ano do ensino médio, 2005 dC, um amigo chamado Renato Amaral me emprestou um disco do Radiohead, o Hail To The Thief, e com ele tive uma linda viagem rumo ao desconhecido.
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Hail to the thief ou Viagem ao desconhecido (com volta, só não sei pra onde) |
Naquela época ouvia música de um jeito diferente, um jeitinho que tem voltado depois de uma década desatenta e negligente, uma maneira de ouvir com atenção, banda a banda, disco a disco, música a música, sem pressa, saboreando. Não existia esse lance de ouvir um single ou músicas picadas. Para se conhecer e saber se a banda era boa, precisava ouvir um disco inteiro, dois, três, toda a discografia.
Ali, com os meus 18 anos, lembro de ouvir música ao acordar, colocando um disco pra tocar no micro system enquanto me aprontava pra aula. Esse disco tinha quer ser curtinho, de trinta minutos, no máximo. Depois, ouvia alguma coisa à tarde, geralmente bandas que mais amava porque sobrava tempo, podia dançar no quarto, tocar bateria imaginária, e depois, antes de (ou para) dormir, ouvia mais um disco. Era então a hora do Radiohead.
O micro system dividia espaço comigo na cama e, aos primeiros sinais do meu cochilo, eu metia o dedão no off e colocava o aparelho pra desmaiar também.
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Porrã, tinha um desses, mas falsi, da CCE |
De volta ao passado: saco o cd do saquinho (cd pirata), abro a tampinha do aparelho após acionar um botão côncavo, insiro – com a habilidade de um sommelier – a bolacha espelhada dentro do micro system, abaixo a tampa, dou o play. Toca a primeira música, que eu descubro qual é lendo a parte de trás do encarte (ou o que havia de encarte em um cd pirata), 2 + 2 = 5. Começa lentinha, lentinha, com aquela voz miúda e aguda (nem tão miúda e nem tão aguda como a da Sandy, mas chorosa), vai crescendo, crescendo aos pouquinhos, estoura, plot twist, musicão. Um rock, com elementos, melodias e timbres estranhos, mas um rock, guitarra e tal.
Ainda estou acordado (um ótimo sinal, pois foi alguns anos depois que começaram as minhas insônias, que já estão se despedindo da minha vida, graças), a segunda música passa a tocar. Ainda não fazia ideia, mas seria uma das minhas preferidas da banda. Sit Down Stand Up também começa lentinha e vai crescendo, o crescimento é mais sutil que a anterior, degrau por degrau, mas de elementos mais estranhos, melodias e timbres que se misturam com música eletrônica. Não é um rock, o que é bem estranho, afinal eu deveria ouvir apenas rock, em 2005 sou um rockista, pô.
A terceira, bem lentinha, e continuaria assim, beeeem len-ti-nha. Dormi nessa música.
Passei uma semana dormindo nela, como um fóbico passeando sobre o viaduto Santa Tereza, não conseguia atravessar a tal ponte. Até que desisti – que banda difícil. Devolvi o cd pro maninho Renato.
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Obviamente um não fóbico. |
Semanas depois apareceu um outro amigo, o da rua de cima, o Magrelo, que copiava vários discos, praticamente todas as bandas de rock que existiam, ele tinha tudo. Esse mesmo amigo me emprestou toda a discografia do Pearl Jam, que viria a ser a minha banda preferida até os vinte anos. Ainda acho o Riot Act o melhor disco, mas acabou ali. Esse amigo da rua de cima foi também quem me emprestou o The Bends e o OK Computer, e falou, se você não gostar do primeiro, tá tranquilo, mas se não gostar do segundo, acho que você nunca vai gostar da banda. Qual a banda? Radiohead.
Ouvi o primeiro, o The Bends (o segundo da carreira deles). Um disco bem simples com arranjos magros, de algumas canções que lembravam o U2. Gostei. Ouvia sempre, era calmo. Levei até pro Lucas ouvir e ele pontuou a semelhança com o U2. Como aquilo podia ser Radiohead e aquele outro disco também? O Pearl Jam tinha me ensinado sobre experimentação em alguns discos como o Vitalogy, No Code, ou em como bandas podem se modificar conforme os anos passam, mas me ensinara pouco. Até que deixei de lado o The Bends e fui atrás de encarar o outro disco, o OK Computer. Sem imaginar a pedrada que viria.
A primeira pedra caiu do espaço, costumam chamar isso de meteoro: “Airbag”. Achei foda, timbre bem louco da guitarra no riff principal. Ouvi a segunda música e minha cabeça saiu da Terra e foi para o espaço, explodindo. Achei o melhor disco do mundo por muito e muito tempo. Claro, depois de ouvir bastante esse disco, ver todos os clipes, ler sobre a banda, quis ouvir os outros. É aí que o Renato retorna à história, pedi a ele o Hail To The Thief de volta. Ouvi… ouvi tranquilo como uma nave. Entendi (esse verbo complexo) o disco, não dormi em nenhuma música e ainda permaneceu como o meu disco favorito da banda. Depois vieram outras pedradas, Kid A, Amnesiac (discaço com sobras da gravação do Kid A). Ouvi a banda por alguns anos até aparecer o In Rainbows, o primeiro disco deles que eu vi eles lançaram e que foi “doado” pelos integrantes da banda ao público. Um ótimo disco. Ouvi menos do que os outros, talvez minha cabeça já estivesse se encaminhando em direção a outras searas. Até que chegou o King Of Limbs. Ouvi uma vez ou duas; não desceu, achei um disco preguiçoso, parecia que a banda estava no fim, houveram rumores, Thom Yorke já estava lançando disco solo e disco com o Atom. Quando chegou o Moon Shaped Pool eu já não tinha qualquer interesse na banda, ouvi uma música ou duas. Pareciam músicas covers do Radiohead, vai ver eram. Essa mesma impressão eu tive com os novos discos do Pearl Jam e do Red Hot (que hoje considero uma das bandas mais chatas que existe, e eu era muito fã na adolescência). Não desmereço nenhuma dessas bandas, apenas não são mais relevantes para mim neste momento, mas foram demais, grandes amigas. Enfim, foi depois de algum esforço que minha cabeça aceitou o Radiohead, e eu fui capaz de compreender a sua música.
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Videoclip de "Just". Resumindo, eu estou bem. |
Quando a sua cabeça aceita algo? Olha, sempre tentei ler Dom Quixote, sempre achei dificílimo. Nunca entrava na minha cabeça, larguei inúmeras vezes depois de “ler” as primeiras páginas. Dias desses peguei só pra passar o tempo enquanto não começava a novela (dei pra assistir na quarentena). A leitura simplesmente fluiu e está fluindo. Depois de algumas tentativas frustradas, a leitura desceu redonda (não como a Skol, mas como a Heineken) como se eu tivesse compreendido, absorvido, psicografado o livro. Essa absorção tem algo de maior do que o simples entender, é outro entender, é a cebola interminável. Essa nova leitura me induziu ao uso de chaves de entendimento, saca só. Usei uma das chaves para entender que o estilo pomposo do texto sempre teve a ver com a paródia de romances de cavalaria, fazia parte do humor do livro, Quixote é um livro de humor. Essa era uma das chaves do entendimento. Talvez a principal, ou a necessária. A chave que eu precisava para abrir a pesadíssima porta verbal. Com o tempo a gente vai se parecendo com leões de chácara, portadores de chaves de leitura; a paciência e a persistência, inclusive, são chaves de ouro.
Então, quando um livro, um disco, um filme te aceita? Quando você pode entrar? Quando ele entra em você? O meu diretor favorito se chama David Cronenberg. E um dos meus escritores favoritos se chama William Burroughs. Em 1994, Cronenberg fez um filme inspirado no livro Naked Lunch, do Burroughs – pra quê, preciso ver esse filme, provavelmente foi o que eu disse. Fui assistir e achei dificílimo. Não entendia o que acontecia, pra onde a história caminhava, eu me encontrava perdido como se fosse Perseu sem o fio de Ariadne. Achando geniais a fotografia, a trilha, os efeitos visuais, mas a história me cansava porque simplesmente não a entendia. Abandonei várias vezes o filme. Até que um dia voltei a assistir. Tem isso também. Por que assistir de novo se não colou da primeira vez? Bem, não sei. Talvez a gente tenha que usar as chaves, elas não podem ficar no bolso. Isso até me lembra um conto da Lygia Fagundes Telles, acho que se chama Os Objetos, não sei, só sei que em determinada hora do conto não me lembro se o narrador ou o personagem (ou seria narrador personagem?) se questiona – uma faca só tem função de existir se cravada no peito. Quis dizer o seguinte: enquanto a faca está adormecida no faqueiro, ela não existe. Uma chave no bolso não tem por quê. Uma chave para abrir uma leitura é uma chave mestra, uma chave que funciona, que encontrou seu lugar no mundo.
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Naked Lunch, o filme. Queria essa máquina. |
Depois de usar a chave da insistência, descobri a história do filme: simples, com um fio narrativo tranquilo de acompanhar, as paranoias que se bifurcavam do centro da trama sempre retornavam à ela, à espinha dorsal da história. O filme então desceu como mel e continuei, e continuo durante esse anos todos, tendo o Cronenberg como o meu favorito. Parece que todas as minhas chaves cabem perfeitamente nas suas portas de percepção, ou seus filmes atravessam facilmente as minhas portas mentais.
Quais chaves você carrega no bolso? Quais portas precisam ser abertas?