quinta-feira, 9 de julho de 2020

18) Suponha que...

Suponha que você more no bairro Serrano, que fica na região noroeste de Belo Horizonte, coladinho à Contagem, bem distante do centro de Beagá, e tenha um irmão mais velho.

Este irmão gosta de ler. Bem e-v-e-n-t-u-a-l-m-e-n-t-e, mas gosta. E de quinze em quinze dias ele leva um livro para casa, a mesma casa em que você mora.

Suponha também que você goste de ler, mas suponha que, diferente de “eventualmente”, goste bastante de ler. E até aí você sabe que existem livros. Eles ficam ou nas livrarias ou na biblioteca da sua escola (trancada na hora do intervalo). Na sua casa não costuma ter livros.

Moradores do bairro Serrano, na Região da Pampulha, reclamam de ...
Mítico Bairro Serrano visto de cima.
Aí você pergunta para o seu irmão onde é que ele conseguiu aquele livro do Stephen King. Ele responde que foi lá no Centro Cultural Pampulha, no Urca.

Você sobrepõe a suposição (logo, muito acima) e se certifica que o Urca, como Contagem está para Belo Horizonte, fica do ladinho do bairro Serrano; é descer a avenida principal até chegar na ponte do córrego e atravessá-la. Melhor do que tudo isso, você já tem 18 anos, portanto, já pode criar uma ficha (só sua) na biblioteca do CCP.

De identidade e comprovante de residência (a mesma residência do seu irmão) em mãos, você desce a avenida, caminhando até a ponte, atravessa a ponte, sobe um pequeno morro (pequeno para mineiro) e se depara com o Centro Cultural. Ali no início da aparição, logo depois da porta de metal e vidro, diante dos seus olhos contentes: a biblioteca.

Mítico Centro Cultural Pampulha, no Urca.
Três ou quatro prateleiras pequenas, duas mesas baixas de centro e uma mesa alta com uma pessoa sentada em uma cadeira (você se lembra) que deveria ser (e era) a bibliotecária.

Vim fazer a carteirinha pra pegar livro emprestado, você diz.

Carteirinha não tem, é apenas um registro num computador branco-amarelado de monitor gigantesco (afinal estamos no início dos anos 2000), mas serve.

Pode sentar, deixa eu ver aqui seus documentos, responde a bibliotecária.

Você se senta e se sente importante durante um tempo. Responde à bibliotecária as dúvidas dela, como o CEP correto, o número do telefone fixo. Em menos de dez minutos, quiçá menos de sete, você tem um registro. Melhor do que isso, já pode levar livros para casa.

Suponha que naquela época você ainda estivesse descobrindo o que ler, os autores que fariam a sua cabeça, os gêneros textuais que melhor narrariam seus desejos, os mundos que perfeitamente se encaixariam no seu mundo. Para alimentar todo esse universo, a biblioteca do CCP, bem pertinho da sua casa, era mais do que uma guarnição, era um prato cheio. Do típico arroz e feijão ao excêntrico sushi, quer dizer, de autores já conhecidos e amados por você, como Luís Fernando Veríssimo, Rubem Fonseca, Henfil e companhia, até aqueles que você se apaixonaria, como Hilda Hilst, Borges, Kafka etc.

Dessas experiências de leitura, de senso de comunidade, de cultura compartilhada, de trânsito de um bairro a outro, de visões e aprendizados, de saber, e esse saber como significado de “existem bibliotecas além da biblioteca da minha escola”, levaria você a frequentar o CCP de forma assídua, mas o anexo da Biblioteca Luiz de Bessa também, além das dezenas de bibliotecas da UFMG, do MIS Santa Tereza.

E em qualquer lugar que você venha a morar em Belo Horizonte, depois de já ter dado uma voltinha para conhecer o bairro, tomar um sorvete e sentar na praça, você vai se perguntar: será que tem uma biblioteca por aqui?

Suponha que Borges uma vez teria dito que o paraíso seria uma biblioteca. Suponha mais uma vez, então, que o paraíso fica logo aqui, na Terra, na rua Expedicionário Paulo de Souza ou na Rua da Bahia ou na rua Mármore ou melhor…

Nem suponha.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

17) As chaves do entendimento abrem as portas da percepção?

No longínquo terceiro ano do ensino médio, 2005 dC, um amigo chamado Renato Amaral me emprestou um disco do Radiohead, o Hail To The Thief, e com ele tive uma linda viagem rumo ao desconhecido.

Hail to the thief ou Viagem ao desconhecido (com volta, só não sei pra onde)

Naquela época ouvia música de um jeito diferente, um jeitinho que tem voltado depois de uma década desatenta e negligente, uma maneira de ouvir com atenção, banda a banda, disco a disco, música a música, sem pressa, saboreando. Não existia esse lance de ouvir um single ou músicas picadas. Para se conhecer e saber se a banda era boa, precisava ouvir um disco inteiro, dois, três, toda a discografia. 

Ali, com os meus 18 anos, lembro de ouvir música ao acordar, colocando um disco pra tocar no micro system enquanto me aprontava pra aula. Esse disco tinha quer ser curtinho, de trinta minutos, no máximo. Depois, ouvia alguma coisa à tarde, geralmente bandas que mais amava porque sobrava tempo, podia dançar no quarto, tocar bateria imaginária, e depois, antes de (ou para) dormir, ouvia mais um disco. Era então a hora do Radiohead. 

O micro system dividia espaço comigo na cama e, aos primeiros sinais do meu cochilo, eu metia o dedão no off e colocava o aparelho pra desmaiar também. 
Mini System Philips AZ1030 - Conserto - YouTube
Porrã, tinha um desses, mas falsi, da CCE
De volta ao passado: saco o cd do saquinho (cd pirata), abro a tampinha do aparelho após acionar um botão côncavo, insiro – com a habilidade de um sommelier – a bolacha espelhada dentro do micro system, abaixo a tampa, dou o play. Toca a primeira música, que eu descubro qual é lendo a parte de trás do encarte (ou o que havia de encarte em um cd pirata), 2 + 2 = 5. Começa lentinha, lentinha, com aquela voz miúda e aguda (nem tão miúda e nem tão aguda como a da Sandy, mas chorosa), vai crescendo, crescendo aos pouquinhos, estoura, plot twist, musicão. Um rock, com elementos, melodias e timbres estranhos, mas um rock, guitarra e tal. 

Ainda estou acordado (um ótimo sinal, pois foi alguns anos depois que começaram as minhas insônias, que já estão se despedindo da minha vida, graças), a segunda música passa a tocar. Ainda não fazia ideia, mas seria uma das minhas preferidas da banda. Sit Down Stand Up também começa lentinha e vai crescendo, o crescimento é mais sutil que a anterior, degrau por degrau, mas de elementos mais estranhos, melodias e timbres que se misturam com música eletrônica. Não é um rock, o que é bem estranho, afinal eu deveria ouvir apenas rock, em 2005 sou um rockista, pô. 

A terceira, bem lentinha, e continuaria assim, beeeem len-ti-nha. Dormi nessa música.


Passei uma semana dormindo nela, como um fóbico passeando sobre o viaduto Santa Tereza, não conseguia atravessar a tal ponte. Até que desisti – que banda difícil. Devolvi o cd pro maninho Renato. 
Viaduto de Santa Teresa: tenha um encontro marcado com os arcos da ...
Obviamente um não fóbico.
Semanas depois apareceu um outro amigo, o da rua de cima, o Magrelo, que copiava vários discos, praticamente todas as bandas de rock que existiam, ele tinha tudo. Esse mesmo amigo me emprestou toda a discografia do Pearl Jam, que viria a ser a minha banda preferida até os vinte anos. Ainda acho o Riot Act o melhor disco, mas acabou ali. Esse amigo da rua de cima foi também quem me emprestou o The Bends e o OK Computer, e falou, se você não gostar do primeiro, tá tranquilo, mas se não gostar do segundo, acho que você nunca vai gostar da banda. Qual a banda? Radiohead.

Ouvi o primeiro, o The Bends (o segundo da carreira deles). Um disco bem simples com arranjos magros, de algumas canções que lembravam o U2. Gostei. Ouvia sempre, era calmo. Levei até pro Lucas ouvir e ele pontuou a semelhança com o U2. Como aquilo podia ser Radiohead e aquele outro disco também? O Pearl Jam tinha me ensinado sobre experimentação em alguns discos como o Vitalogy, No Code, ou em como bandas podem se modificar conforme os anos passam, mas me ensinara pouco. Até que deixei de lado o The Bends e fui atrás de encarar o outro disco, o OK Computer. Sem imaginar a pedrada que viria.

A primeira pedra caiu do espaço, costumam chamar isso de meteoro: “Airbag”. Achei foda, timbre bem louco da guitarra no riff principal. Ouvi a segunda música e minha cabeça saiu da Terra e foi para o espaço, explodindo. Achei o melhor disco do mundo por muito e muito tempo. Claro, depois de ouvir bastante esse disco, ver todos os clipes, ler sobre a banda, quis ouvir os outros. É aí que o Renato retorna à história, pedi a ele o Hail To The Thief de volta. Ouvi… ouvi tranquilo como uma nave. Entendi (esse verbo complexo) o disco, não dormi em nenhuma música e ainda permaneceu como o meu disco favorito da banda. Depois vieram outras pedradas, Kid A, Amnesiac (discaço com sobras da gravação do Kid A). Ouvi a banda por alguns anos até aparecer o In Rainbows, o primeiro disco deles que eu vi eles lançaram e que foi “doado” pelos integrantes da banda ao público. Um ótimo disco. Ouvi menos do que os outros, talvez minha cabeça já estivesse se encaminhando em direção a outras searas. Até que chegou o King Of Limbs. Ouvi uma vez ou duas; não desceu, achei um disco preguiçoso, parecia que a banda estava no fim, houveram rumores, Thom Yorke já estava lançando disco solo e disco com o Atom. Quando chegou o Moon Shaped Pool eu já não tinha qualquer interesse na banda, ouvi uma música ou duas. Pareciam músicas covers do Radiohead, vai ver eram. Essa mesma impressão eu tive com os novos discos do Pearl Jam e do Red Hot (que hoje considero uma das bandas mais chatas que existe, e eu era muito fã na adolescência). Não desmereço nenhuma dessas bandas, apenas não são mais relevantes para mim neste momento, mas foram demais, grandes amigas. Enfim, foi depois de algum esforço que minha cabeça aceitou o Radiohead, e eu fui capaz de compreender a sua música.

Just (singolo) - Wikipedia
Videoclip de "Just". Resumindo, eu estou bem.
Quando a sua cabeça aceita algo? Olha, sempre tentei ler Dom Quixote, sempre achei dificílimo. Nunca entrava na minha cabeça, larguei inúmeras vezes depois de “ler” as primeiras páginas. Dias desses peguei só pra passar o tempo enquanto não começava a novela (dei pra assistir na quarentena). A leitura simplesmente fluiu e está fluindo. Depois de algumas tentativas frustradas, a leitura desceu redonda (não como a Skol, mas como a Heineken) como se eu tivesse compreendido, absorvido, psicografado o livro. Essa absorção tem algo de maior do que o simples entender, é outro entender, é a cebola interminável. Essa nova leitura me induziu ao uso de chaves de entendimento, saca só. Usei uma das chaves para entender que o estilo pomposo do texto sempre teve a ver com a paródia de romances de cavalaria, fazia parte do humor do livro, Quixote é um livro de humor. Essa era uma das chaves do entendimento. Talvez a principal, ou a necessária. A chave que eu precisava para abrir a pesadíssima porta verbal. Com o tempo a gente vai se parecendo com leões de chácara, portadores de chaves de leitura; a paciência e a persistência, inclusive, são chaves de ouro. 

Então, quando um livro, um disco, um filme te aceita? Quando você pode entrar? Quando ele entra em você? O meu diretor favorito se chama David Cronenberg. E um dos meus escritores favoritos se chama William Burroughs. Em 1994, Cronenberg fez um filme inspirado no livro Naked Lunch, do Burroughs – pra quê, preciso ver esse filme, provavelmente foi o que eu disse. Fui assistir e achei dificílimo. Não entendia o que acontecia, pra onde a história caminhava, eu me encontrava perdido como se fosse Perseu sem o fio de Ariadne. Achando geniais a fotografia, a trilha, os efeitos visuais, mas a história me cansava porque simplesmente não a entendia. Abandonei várias vezes o filme. Até que um dia voltei a assistir. Tem isso também. Por que assistir de novo se não colou da primeira vez? Bem, não sei. Talvez a gente tenha que usar as chaves, elas não podem ficar no bolso. Isso até me lembra um conto da Lygia Fagundes Telles, acho que se chama Os Objetos, não sei, só sei que em determinada hora do conto não me lembro se o narrador ou o personagem (ou seria narrador personagem?) se questiona – uma faca só tem função de existir se cravada no peito. Quis dizer o seguinte: enquanto a faca está adormecida no faqueiro, ela não existe. Uma chave no bolso não tem por quê. Uma chave para abrir uma leitura é uma chave mestra, uma chave que funciona, que encontrou seu lugar no mundo.

Forgotten Cronenberg: Naked Lunch - Byl Holte - Medium
Naked Lunch, o filme. Queria essa máquina.
Depois de usar a chave da insistência, descobri a história do filme: simples, com um fio narrativo tranquilo de acompanhar, as paranoias que se bifurcavam do centro da trama sempre retornavam à ela, à espinha dorsal da história. O filme então desceu como mel e continuei, e continuo durante esse anos todos, tendo o Cronenberg como o meu favorito. Parece que todas as minhas chaves cabem perfeitamente nas suas portas de percepção, ou seus filmes atravessam facilmente as minhas portas mentais. 

Quais chaves você carrega no bolso? Quais portas precisam ser abertas?

quarta-feira, 20 de maio de 2020

16) O vício que não me destruiu ao longo dos anos

Antes de colocar essas palavras em ordem, estava lendo um romance de Luiz Alfredo Garcia-Roza, Um lugar silencioso. Mergulhei na empreitada faz uns quatro dias. Já tinha o livro na prateleira e ensaiei algumas vezes o mergulho, mas pendurei a toalha outras tantas vezes, antes de cair na água, adiando o nado para a época de quarentena (não que eu soubesse que iríamos cair nesse poço).
Um dos episódios da primeira temporada de Twilight Zone, Time Enough at Last.
Já dentro do livro, sem conseguir largá-lo por muito tempo, pipocou na minha cabeça um pensamento precedido de uma sensação, a de prazer. Ultimamente flashback é o que minha cabeça mais tem gostado de usar para contar as suas narrativas absurdas. E são com esses recursos que tenho me deparado diariamente com comparações entre o meu passado e o meu presente. A reconstrução contínua da minha memória tem criado déjà-vu de longas distâncias espaço-temporais. Posso explicar melhor.

Flashback: antes das palavrinhas rechearem este texto, estava na rede lendo o Garcia-Roza, sentindo prazer pela leitura, querendo ler mais, ao mesmo tempo guardando para não faltar no futuro, e tudo isso me remetendo às primeiras memórias de leitura da adolescência; olhando para o texto corrido e para o número de páginas, fascinado ao descobrir a cada parágrafo lido que aquele bloco de papel impresso chamado livro me dava mais e mais prazer conforme eu ia se apossando dele. Uma sensação idêntica àquela experienciada na juventude.

Ao longo dos anos esse sentimento foi se intensificando. Hoje tenho pelo menos dois livros para me fazer companhia durante o dia: um para a tarde, outro para antes de dormir. Às vezes mudo os livros de turno, às vezes coloco mais um livro na conta. Tornou-se um vício que não me destruiu (nem parece que vai me destruir) ao longo dos anos.

Time Enough at Last: “The One That Haunts People” | Shadow & Substance
Abaixo um diálogo entre o gerente do banco e o funcionário Mr. Bemis,
em Time Enough At Last.



"You, Mr. Bemis, are a reader!"
"A reader?"
"A reader! A reader of books, magazines, periodicals, newspapers. I see you constantly going downstairs into the vault during your lunch hour".
O kindle entrou na minha vida tem também algumas semanas. Confesso que ainda não me entreguei ao aparelho. Foi útil para ler alguns artigos sobre cinema de animação, fotografia, mas com a literatura  e ainda não sei o porquê  não foi para frente. Li alguns capítulos de Crime e Castigo, me pareceu uma tradução ruim, então deixei de lado. Agora baixei Vidas Secas e alguns livros do Philip K. Dick; assim que a empreitada Garcia-Roza terminar quero cair matando para despachar esse ranço (se é que tenho) com o kindle. Na real nem sei se é ranço. Acho que é apenas um hábito, uma maneira de ler, um contato que falta com o físico, com a folha de papel, a diagramação, coisas que sinto falta. Talvez a noção de estar lendo. Quando estou lendo no computador, estou lendo mas como se não estivesse; não me pergunte por que sinto isso, depois penso sobre. Inclusive não faz tanto sentido: você sente que não está lendo este texto? Pois é, ao menos que você tenha ele impresso diante dos olhos, não passa de um texto digital. Ou talvez tenha a ver e nem sou eu quem estou dizendo, mas eles

Voltando ao prazer. Fiquei pensando nessa coisa da leitura do livro ainda suscitar essa experiência prazerosa depois de tantos anos. Confesso que me sentia anestesiado pelas incontáveis possibilidades de entretenimento (considero o livro entretenimento), computador, celular, séries, filmes, youtube etc. A leitura voltou com muita força e o desejo de escrita também. Às vezes precisamos de um tempo, vai ver é só isso. Estou encantado com amigos que não liam com frequência falando dos livros que têm lido nessa quarentena. Gente que engole 400 páginas em pouco mais de uma semana e vem dar o retorno da leitura com a maior voz de felicidade do mundo. Tenho acreditado nelas, na leitura, nesse prazer que nos alegra ao longo dos anos.