Antes de colocar essas palavras em ordem, estava lendo um romance de Luiz Alfredo Garcia-Roza, Um lugar silencioso. Mergulhei na empreitada faz uns quatro dias. Já tinha o livro na prateleira e ensaiei algumas vezes o mergulho, mas pendurei a toalha outras tantas vezes, antes de cair na água, adiando o nado para a época de quarentena (não que eu soubesse que iríamos cair nesse poço).
Um dos episódios da primeira temporada de Twilight Zone, Time Enough at Last. |
Já dentro do livro, sem conseguir largá-lo por muito tempo, pipocou na minha cabeça um pensamento precedido de uma sensação, a de prazer. Ultimamente flashback é o que minha cabeça mais tem gostado de usar para contar as suas narrativas absurdas. E são com esses recursos que tenho me deparado diariamente com comparações entre o meu passado e o meu presente. A reconstrução contínua da minha memória tem criado déjà-vu de longas distâncias espaço-temporais. Posso explicar melhor.
Flashback: antes das palavrinhas rechearem este texto, estava na rede lendo o Garcia-Roza, sentindo prazer pela leitura, querendo ler mais, ao mesmo tempo guardando para não faltar no futuro, e tudo isso me remetendo às primeiras memórias de leitura da adolescência; olhando para o texto corrido e para o número de páginas, fascinado ao descobrir a cada parágrafo lido que aquele bloco de papel impresso chamado livro me dava mais e mais prazer conforme eu ia se apossando dele. Uma sensação idêntica àquela experienciada na juventude.
Ao longo dos anos esse sentimento foi se intensificando. Hoje tenho pelo menos dois livros para me fazer companhia durante o dia: um para a tarde, outro para antes de dormir. Às vezes mudo os livros de turno, às vezes coloco mais um livro na conta. Tornou-se um vício que não me destruiu (nem parece que vai me destruir) ao longo dos anos.
Abaixo um diálogo entre o gerente do banco e o funcionário Mr. Bemis, em Time Enough At Last. |
"You, Mr. Bemis, are a reader!"
"A reader?"
"A reader! A reader of books, magazines, periodicals, newspapers. I see you constantly going downstairs into the vault during your lunch hour".
O kindle entrou na minha vida tem também algumas semanas. Confesso que ainda não me entreguei ao aparelho. Foi útil para ler alguns artigos sobre cinema de animação, fotografia, mas com a literatura — e ainda não sei o porquê — não foi para frente. Li alguns capítulos de Crime e Castigo, me pareceu uma tradução ruim, então deixei de lado. Agora baixei Vidas Secas e alguns livros do Philip K. Dick; assim que a empreitada Garcia-Roza terminar quero cair matando para despachar esse ranço (se é que tenho) com o kindle. Na real nem sei se é ranço. Acho que é apenas um hábito, uma maneira de ler, um contato que falta com o físico, com a folha de papel, a diagramação, coisas que sinto falta. Talvez a noção de estar lendo. Quando estou lendo no computador, estou lendo mas como se não estivesse; não me pergunte por que sinto isso, depois penso sobre. Inclusive não faz tanto sentido: você sente que não está lendo este texto? Pois é, ao menos que você tenha ele impresso diante dos olhos, não passa de um texto digital. Ou talvez tenha a ver e nem sou eu quem estou dizendo, mas eles.
Voltando ao prazer. Fiquei pensando nessa coisa da leitura do livro ainda suscitar essa experiência prazerosa depois de tantos anos. Confesso que me sentia anestesiado pelas incontáveis possibilidades de entretenimento (considero o livro entretenimento), computador, celular, séries, filmes, youtube etc. A leitura voltou com muita força e o desejo de escrita também. Às vezes precisamos de um tempo, vai ver é só isso. Estou encantado com amigos que não liam com frequência falando dos livros que têm lido nessa quarentena. Gente que engole 400 páginas em pouco mais de uma semana e vem dar o retorno da leitura com a maior voz de felicidade do mundo. Tenho acreditado nelas, na leitura, nesse prazer que nos alegra ao longo dos anos.
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