quarta-feira, 2 de março de 2022

29) Tudo terminará como começou

O silêncio é um senhorzinho de muita idade. Tanta idade ele tem que chega a ser o mais velho senhor existente. Visto que o silêncio — como diria Arnaldo (não o Cézar Coelho) — foi a primeira coisa que existiu.

Esse senhorzinho tem nos dedos os mais variados calos, de todas as épocas, de todos os lugares. Tão consumido pelo tempo é o seu corpo que a mesma idade do tempo ele tem.

Segundo dados nem um pouco avançadíssimos de pesquisa, o silêncio anda tão fora de moda que já nem anda. Para ir daqui até ali, a bengala é de ótima serventia. Com a cautela herdeira da idade, o silêncio caminha atento para não se machucar com as quinas desavisadas, e usa um aparelhinho para escutar melhor. Resultado de uma vida inteira dedicada ao ouvir — esse verbo tão maltratado.

Sim, isso mesmo, o silêncio de que falo não é aquele sinônimo de ausência de som. O silêncio ouve, pois sabe a hora de se calar.

Breve amostra do silêncio: você está sentado em uma poltrona, lendo um livro de poemas, daqueles de arrebatar. Daí que você lê o último verso do melhor poema que aquele dia poderia ter lhe dado. Instaura-se um silêncio. Desse silêncio ouve-se a garganta engolindo em seco. A cabeça a borbulhar o indizível. Você ouve barulhos internos — do estômago?  —, barulhos externos — o carro passando na rua, a geladeira roncando —, barulhos que compõem o silêncio. Um silêncio impactante, tão estrondoso como a algazarra de um vulcão desperto. 

O senhorzinho silêncio anda tão fora de moda com o seu pulôver. Nada damos a ele. Nada parece ele merecer. Um E.T., de tão estranho que é. Tão anacrônico e desrespeitado. Desde a ascensão do Walkman até os dias do "Ligue o som" dos desesperados stories, o desrespeito só aumenta.

Tão fora de moda que o "ficar em silêncio" tem enlouquecido as pessoas. As pessoas se sentem solitárias em sua companhia. 

Breve amostra do medo do silêncio: você quer deitar-se, dormir o sono dos justos, mas o medo de ficar em silêncio a consome, quando deveria ser o sono a bater à porta. Decide por colocar um barulhinho enquanto o sono não vem, o barulhinho é melhor companhia do que o silêncio.

O silêncio se tornou uma companhia indesejada como fora o reflexo para Narciso. Caso o silêncio tente dar os ouvidos por aí, há quem se reunirá em passeatas contra esse intruso ou apenas será, em contrapartida, um fiel defensor do barulho em toda e qualquer instância.

O silêncio parece uma planta que cresce do concreto, tentando resistir apesar de todo o entorno se vestir do contrário. Uma planta bonita, de verde vívido, mas dia a dia retirada sob a acusação de ser uma erva daninha.

Quando estamos na companhia do silêncio, podemos nos ouvir. É o que menos queremos no entanto. Esse senhorzinho ensina a ouvir o outro assim como a nós. No momento em que tudo parece gritar por atenção, o silêncio para, escuta e pensa naquilo que escuta.

O silêncio é generoso como são aqueles que sabem, apesar da dificuldade em caminhar, apesar da idade, apesar de todo o burburinho, que tudo terminará como começou.

Em silêncio.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

28) Um brinde

Há alguns milhares de anos (na real? acho que um pouco mais de dois), os gregos entendiam que o amor erótico era um dos remédios contra a morte. Eles davam o nome de phármakon a esse comprimidinho. Esse amor era cantado nas líricas – poemas recitados ao som do instrumento lira.

Não é que se você trepasse como hamster sem rodinha enganaria a senhora das foices. Você só aplicaria uma dose de Alzheimer na mais velha conhecida nossa, e ela te deixaria para uma outra hora, quando lembrasse. Ou seja, você espantaria a indesejada por um tempo, aquela evangelhista ferrenha do fim dos dias, e finalmente viveria a plenitude, o prazer em essência.

Um amorzinho era um remédio (e acredito que ainda seja) daqueles, mas outras coisas entravam na lista que Dionísio esculpira numa pedra da marca Tilibra. Por exemplo... a celebração!

A celebração era a síntese, o próprio phármakon, o remédio por excelência, fosse amando, cantando, bebendo, recitando versos ao som de lira ou em linhas afiadas de um rap – acho que não naquela época. Lembramos que Hermes até tinha um flow invejado, passava uma mensagem que era uma beleza, sempre se baseando ali na métrica de Homero, mas rap, rap mesmo, ainda não.

Na década de 70 da nossa era o lema "Sexo, Drogas e Rock and Roll" ficou famoso. Na Grécia do século V antes de Cristo, o lema poderia ter sido "Afrodite, Dionísio e As Musas".

Era preciso celebrar o amor, o vinho, a arte, o sexo, a embriaguez, a beleza. Não apenas a virilidade e a guerra mereciam destaque, como faziam Aquiles e seus amigos postadores de bíceps dos stories – conhecidos como cantos da Ilíada. E, claro, um bíceps que eu gostaria de ter, porque esses bracinhos meus aqui são a própria lira.  

Nos dias da era (ainda) cristã, as pessoas vão a bares, festas regadas ao melhor do álcool, assistem ao Campeonato Brasileiro. E tem a celebração para o time dos que preferem uma aguinha, assistir a um jogo de futebol com suquinho, rir com Friends, ler poemas. Ou cantar o amor e a sorte de estar vivo em letras de música, em filmes com a Drew Barrymore, em casos românticos clichês das novelas, ou uma volta de bicicleta para ver a cidade. 

Como diria o nosso russo camarada, alcunhado por Dostinha, e Dostoiévski para os acadêmicos, a beleza salvará o mundo. 

Para os líricos gregos, porém, era preciso "usar" de tudo com temperança, já que comprimidinhos traziam efeitos colaterais terríveis se usados com exageros, pois phármakon significava tanto a saúde como a doença.

Resumo da lírica: não se vivia apenas de vinho, sexo e arte. Não se vivia uma vida inteira dedicada aos banquetes. Mas sem banquete, sem celebração, não tinha por que viver.

Para lembrar de estar vivo pode ser a mistura do caos e da sanidade, a mesa com cerveja e com suco, com água e com vinho, o pote de tinta despejado num quadro branco como fazia Pollock – que era um beberrão daqueles.  

Novamente, porém, não interessa: não é a embriaguez que faz a diferença, nem mesmo a sobriedade.

O que faz a diferença é o brinde.

domingo, 6 de fevereiro de 2022

27) Acabou o mistério?

Pode ser que o mistério tenha definitivamente desaparecido e nem mesmo Hercule Poirot, com suas habilidades indiscutíveis, possa encontrá-lo.

Assim como não é mais possível trombar com um tigre-dentes-de-sabre na avenida Afonso Pena. Triste. E se o mistério estiver na cama de um hospital à espera do último suspiro? Quem vai atrás de salvá-lo da extinção? Parece que o Batman anda ocupado com as suas finanças.

Tudo isso virou assunto que não se toca, coisa do passado, poeira do tempo, máquina de escrever, relacionamentos duradouros, Cruzeiro na série A. Não é de hoje que esse ser que só mostra a metade do rosto tem vivido os seus finalmentes (e ainda bem que são vários). Não sei quando começou a derrocada do quase inominável. Convenhamos, quando não citamos o seu nome, alimentamos ainda mais o mistério.

Eu, como detetive freelancer, tenho algumas pistas que levarão à descoberta do fim do mistério. Abrindo meu caderno Tilibra com capa de surfista, eis as três pistas tingidas à caneta Bic:

Pista Número 1 - Mania de explicação da Internet.

Você sabe quem foi Hercule Poirot? O belga Hercule Poirot ou simplesmente Poirot foi um grande detetive fictício e protagonista da maioria dos livros de Agatha Christie, a dama do crime. Fonte: Wikipédia, levemente alterada.

Se fosse só até aí, tudo bem, só que de repente aparece um vídeo de 14 horas a dissecar (uma palavra importante) todas as teorias possíveis que cercam a vida e a morte de Hercule Poirot, com cento e dezesseis entrevistas com especialistas da literatura de Agatha e mais o Metaforando, trajando o seu elegante terno azul-marinho, analisando os minuciosos movimentos da rainha do crime e tirando dezenove conclusões ao quadrado do que comia, assistia, onde vivia, que jornal lia, e qual a bolinha de gude preferida de Herculinho, quando este tinha apenas seis anos de idade. E você já sabe isso tudo, sem ter lido um livrinho da Agatha Christie.

Não há mistério que sobreviva. 

Pista Número 2 - Tudo é mostrado o tempo todo.

Acordei, deixa eu mostrar meu rosto sem maquiagem para provar que sou linda também sem maquiagem. Clique. Esse café da manhã tá dos deuses e muito fitness com essa granola de protagonista. Clique. Hora de trabalhar. Deixa eu mostrar meu macbook com a setinha do mouse sobre o botão de enviar do e-mail que enviarei para o meu chefe em Orlando. Clique. E agora bateu uma fome de arroz e feijão, mas sushi cai melhor com o foco correto na minha mão ao segurar o hashi com a mesma habilidade que Bruce Lee manuseava um nunchaku.

Não há mistério que não morra de inanição. 

Pista Número 3 - Nem pode ser sumido mais.

O canto Belchior, autor de clássicos como Rapaz latino-americano, Divina comédia humana e Sujeito de sorte, reaparece no Uruguai depois de anos sumido.

“Eu sou apenas um velhinho laaaatino-americano seeeem dinheiro no banco, com amigos importaaaantes e intercâmbio no exterioooor." 

Com o fim do mistério, acho melhor a nova edição do Aurélio vir sem essa palavra, para que a gente não se iluda que ele, sempre, há de pintar por aí.

Fiquemos apenas com o que ele um dia chegou a ser, como um melhor amigo que já não é mais. Ou com aquela música que vai tocar (ou não) na rádio e você precisa estar com a fita k7 em mãos para gravar. Diferente do status do MSN que já dizia se você estava feliz, triste ou ouvinte de Nirvana com 35 graus de sol – que é bem parecido com triste.

Fiquemos com aquele filme de terror realmente aterrorizante, e que apenas as pessoas que conheciam o valor do mistério te falariam as palavras exatas sobre ele, "Não vou contar nada. Só assiste, cara!". Bem diferente dos cinco trailers que passam todas as cenas do filme de forma embaralhada, e que você de frente para o computador diz: "Já sei tudo, nem vou assistir. Só fazer uma pipoquinha. Tô com uma fooome."

Com uma certa tristeza, confesso que o mistério está próximo do fim, e como disse lá em cima, à espera de seu último suspiro numa cama de hospital. Triste.

Mas... se ele está em um hospital, em qual? E se este meu diagnóstico de detetive freelancer estiver errado? Não sei as respostas para essas perguntas. Sou mal pago. Não sou Poirot. 

No entanto, uma coisa fica: o mistério.