É justamente a infinitude que nos interessa ao caminhar. Não ter um destino: alguém levantando uma placa de papelão com o nosso nome rabiscado em meio a um aeroporto infestado de gente. Não ter uma chegada: um pódio dividido em três categorias de vencedores. Não ter um porto: um solo de areia, palmeiras e vendedores de coco que nos atraquem. Caminhar – desculpe a indecência – não leva a lugar nenhum.
Caminhar elide sujeito e objeto. (Talvez algum poeta tenha dito algo parecido). Caminhar é (atente ao tempo verbal) presença. Pelos menos o caminhar de que falo. Aquele sem dívidas a serem quitadas com a barriguinha. Sem pódio de chegada ou beijo de namorada. (Sim, um letrista falou). Caminhar por caminhar, para se reconhecer.
Comecei a manifestar esse caminhar quando ainda o encarava como uma maneira de economizar o dinheiro da passagem de ônibus de ida à escola para comprar cds do Pearl Jam; banda que me fascinava na adolescência e que fazia de seus discos obras-primas gráficas. Ia do Caiçara (onde ficava a escola) até o Serrano (onde eu morava) apenas guiado pelos meus pés; e, sim, tinha um destino. Até dois. Chegar no Serrano vivo a cada dia. Depois de uma semana, uma semana e meia, ter o dinheiro para comprar o cd.
Depois esse caminhar começou a surgir em momentos em que eu precisava conversar com um amigo. Aí eu convidava alguém, nós comprávamos um Chapinha e dá-lhe pernas até a Lagoa da Pampulha. Apesar de parar na Lagoa, não era em si um destino, um objetivo. O objetivo era a conversa. Tanto a caminhada como a lagoa eram trajetos.
Até que (já naquela época) as pessoas não tinham mais tempo e nem sempre havia um amigo, e aí o trajeto se transformava em companhia. E o destino, o objetivo já não tinha importância. A importância morava nos pés em movimento. Nos olhos a verem as coisas. Nas narinas a sentirem o cheiro enquanto ouvidos percebiam movimentos, sons próximos, sons distantes.
Tanto feliz como triste, caminhava. Uma vez vi um documentário na tevê aberta sobre andarilhos. Como é de costume desses programas, metade de tela era de entrevistas com os andarilhos, metade com "especialistas". E os especialistas diziam que quem tinha como objetivo na vida o andar, era alguém sem rumo. De início pensei que eu não tinha rumo nada vida e cheguei a comentar com uma amiga essa descoberta. Por fim tive certeza de que não tinha rumo na vida... e tudo bem.
O "tudo bem" surgiu com mais força depois de descobrir a meditação andando. Para os budistas da escola zen (ou chan, se for chinesa) o caminhar sem meta é uma das práticas meditativas. Eles praticam em uma sala, e dão o nome de kinhin, mas também praticam em ambientes externos. E nos últimos dias decidi praticá-la novamente. Para isso tirei da estante um livro do Thich Nhat Hanh, Meditação Andando. Desse monge, na Netflix, até um mês atrás tinha um documentário sobre seu mosteiro, o Plum Village, na França. É uma pena que tiraram; pelo menos consegui assistir três vezes.
A meditação andando contempla esse aspecto de não ter meta enquanto se caminha. Não querer destino. Essa nossa obsessão por resultados traz também muitas frustrações. Porque, simplesmente, não podemos ter tudo o que desejamos. Quase sempre não chegaremos ao pódio. O real então se mostra não é nem no começo, nem no fim, mas no meio da... (eu sei, eu sei que você já conhece essa frase, deixa eu só terminar) ...travessia.
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