terça-feira, 11 de maio de 2021

22) Ter ideia ou não ter ideia, eis a questão

Melitta Bentz, a inventora do filtro de café

Os verbos "descobrir" e "inventar" têm a mesma raíz latina: inventio, “achado", "descoberta".

Descobrir é então inventar e inventar é então descobrir.

Segundo alguns, toda criação parte de uma ideia. Será?

É verdade que a criação pode ser iluminada por uma fonte de luz direta, mas costuma curtir mais a natureza difusa.

A ideia da ideia de ter ideia prolifera como formigas em açúcar abandonado, principalmente em manuais de arte ou cursos EAD com enormes descontos para os 50 primeiros inscritos. 

Durante muitos anos (nem tantos, na real) acreditei que só escreveria um texto, faria uma música ou desenharia algo se tivesse antes uma ideia; de preferência das boas, daquelas que mudam o mundo, nosso jeito de ser, nossa produção, em que teremos finalmente encontrado a mina de ouro da criatividade, a manifestação viva da pedra filosofal, ou o Santo Graal da invenção.

A grande ideia existe, mas você não precisa dela. A pequena ideia já serve. Melhor do que isso, não ter ideia nenhuma serve mais ainda.

Acontece de ficarmos à espera de um despertar, uma iluminação dos gurus. Às vezes, ela vem. É luminosa, cheia de vida. A mente é encoberta por uma bolha de realidade em que tudo então poderá ser resolvido. Você faz planos, estrutura mentalmente aquela primeira intenção, pensa no investimento (de grana e energia) que terá de fazer, nas pessoas envolvidas, no tempo para a conclusão; pensa no resultado, em pessoas recebendo aquele tesouro, nos trabalhos posteriores, nas entrevistas em programas de tevê e internet, na lavada de cara daquele conhecido que nunca acreditou em você. Enfim, uma tempestade cerebral de tirar não só o cavalinho da chuva, mas o sedan prateado 2.0 e a barraquinha de cachorro-quente.

Até que você desiste de tudo ainda no sofá, porque a ideia cresceu demais, e você... é só alguém sentado no sofá.

Talvez, antes de pensar em como tirar uma foto, apenas ligue a câmera e tire uma foto. Talvez, antes de pensar naquele texto a la Hilda Hilst, comece a escrever qualquer coisa no guardanapo do bar, no papel sulfite ralinho e cheio de pautas. Talvez, antes de pensar naquele curta que vai mudar a cara dos festivais de cinema nos próximos vinte anos, desenhe sem ter a menor ideia do que está fazendo, apenas uma linha depois da outra. Tire a coberta do pensamento: descubra.

Quem sabe essa primeira foto não te dê uma partida, um trajeto, ou melhor, uma chegada: aquela fotografia já pronta, sem antes ter imaginado a sua existência. Quem sabe esse texto sem pé nem cabeça crie um tronco, que dele crescem membros, que surgem olhos, que gera um personagem, um história, um mundo? Quem sabe esse desenho não se desdobre em uma cena, um diálogo, ou apenas um desenho mesmo, e só. Tá pronto. 

Uma vez, o pintor Edgar Degas disse ao poeta Mallarmé que gostaria de escrever poesias, pois ele tinha muitas ideias para poemas. E foi aí que Mallarmé respondeu mais ou menos assim: meu amigo Edgar, puxa essa cadeira aí, senta aqui um pouquinho. Escuta só. Poemas não são feitos de ideias, mas de palavras.

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