sexta-feira, 8 de agosto de 2025

37) O romance policial à maneira de Dyonelio Machado

O meu primeiro contato com Os Ratos de Dyonelio Machado, um "livrinho" (como o próprio autor apelida em uma de suas entrevistas), foi lá por volta de 2006, quando eu havia conquistado o meu primeiro emprego e com isso tinha um salário que pudesse gastar com o que bem entendesse, ou melhor, com o que o dinheiro desse. Me lembro de comprá-lo junto de "A Grande Arte", do Rubem Fonseca. Da mesma coleção da Abril, "Clássicos da Literatura Brasileira", numa dessas promoções de livrarias de shopping, em que se você é paciente e atento, consegue achar pérolas em meio a acúmulos de papeis encadernados. Sempre fui mais leitor de Literatura Brasileira do que de qualquer outra. E é bom. O texto é sempre o original. Ainda mais eu: inglês afluente, espanhol desnecessário, francês de sutiã. Quando leio um autor brasileiro, não encontro cortina entre mim e o texto - que aqui chamarei de tradução. Estão lá as palavras que o próprio escritor escolheu para contar a história. E se a principal matéria-prima da literatura é a palavra, fico com a certeza de acariciar a lebre, não o gato. Nesse caso, acaricio os ratos. Um livro que conta a história de Naziazeno, um funcionário público metido em uma dívida com o leiteiro da sua cidade. Só isso. E todo o resto. Se você já leu algum manual de roteiro para cinema ou televisão, já sabe, sempre lhe ensinam resumir a história em apenas uma linha, a famosa storyline. Se a coisa funcionar nessa síntese, vale a pena destrinchá-la em argumentos completos, escaletas e pontos de virada. E em minha quinta leitura deste livrinho, ainda fico embasbacado com a habilidade do autor de contar, com uma linguagem direta e bem construída, na qual o narrador e o protagonista se misturam, sob um suspense de competir com o Alfred (não o mordomo). Thriller cabuloso, protagonizado por um funcionário público. Pérola achada num shopping, naquela que é, possivelmente, a pior livraria de todos os tempos. Poderia eu falar sobre muitos temas dentro deste livro; falar da dívida, da escassez, da urbanidade, da burocracia, da baixa autoestima de Naziazeno, da relação entre funcionários e empregados, da circularidade narrativa, do discurso indireto-livre, enfim, escolho porém a primeira impressão que tive, a da primeira leitura, daquela pós-shopping: sempre me pareceu que este livrinho é um livro policial.
 

O crime surge logo no início do livro, é a dívida com o leiteiro. Durante o miolo temos Naziazeno à procura de quitar esta dívida, como um detetive à cata das pistas que o levem a prender o assassino. Interessante pensar é que Naziazeno talvez seja o detetive e ao mesmo tempo o criminoso. Mas não ficamos apenas com essas similaridades com os romances policiais, como o crime do leite surgir no início da trama (e resolver no último capítulo), temos sobretudo a linguagem ágil da narrativa, presa pelo tempo presente do indicativo, aspecto que aparece em muitos romances policiais. O leitor se depara com as pistas cujo narrador dá a ele, e junto com Naziazeno, sai em busca da solução do crime, ou seja, em direção à quitação da dívida com o leiteiro. Prender o "criminoso" não seria prender Naziazeno, mas resolver o crime. Seria então não uma narrativa de crime perfeito, mas uma resolução perfeita, cuja justiça não se conclui ao punir um suposto criminoso, mas dando a ele a liberdade. Nesse sentido, a resolução, já seria o criminonso ter a sua sentença paga, seria a justiça final, quase cristã. Naziazeno, durante a busca por resolução do crime, também paga a própria sentença. 

36) A liberdade é ser privado da liberdade

Acabei de reler O Estrangeiro do Albert Camus. Foi a minha segunda vez. Coloquei como primeiro livro de um Clube de Leitura que faço com um dos meus alunos de literatura. Ele tem o desejo de ler clássicos. Então sugeri que escolheríamos 10 livros, sendo 5 dicas de cada um. Coloquei O Estrangeiro primeiro porque é um livro relativamente fácil de ler. Com linguagem ágil ao mesmo tempo que nada ingênua. E o início é arrematador, o que ajuda a pregar o olho até o final. Pois bem, li em três tardes, e dessa vez, achei melhor que a primeira leitura. Mas aconteceu algo, não achei tão absurdo a segunda parte após o crime, que seria “o castigo”. Dessa vez as sentenças e a relação de Meursault com a sua prisão me pareceu mais concreta e realista, talvez porque o mundo real e atual esteja cada vez mais absurdo. 


Não senti dessa vez que ele não tenha se importado com ser preso, o que vi foi a aceitação dos fatos, da realidade – ele até cita que, após a morte do árabe, iniciaria-se a sua desgraça. Foi interessante perceber que a acusação parecia incriminá-lo, sobretudo pela pela indiferença pela morte de sua mãe no início da história. De qualquer maneira, a questão da liberdade como a aceitação do absurdo me pareceu clara e justificável, tanto é que Meursault, próximo do fim, passou a aceitar e a querer estar privado da liberdade e se sentia feliz – certo que isso parecia absurdo, e possivelmente depressivo. Mas Meursault citava a felicidade em alguns momentos. Isso é uma coisa que talvez eu só tenha percebido nesta leitura, Meursault se sente feliz esporadicamente, apesar de ter uma relação estéril com os momentos, mesmo junto dos amigos: quando se encontrava com Marie, quando tinha epifanias na cela. O “tanto faz” que percorre toda a narrativa me pareceu dessa vez uma displicência, sim, como antes, mas não uma ausência de sentimentos. Pelo menos na segunda parte do livro, Meursault, mesmo que desiludido, vê algumas graças, embora em lugares perigosos, para-baixo. Mais tarde pretendo elaborar um trabalho de comparação entre este livro, Crime e Castigo e Na Colônia Penal