sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Trabalho da Mãe ou Piscina de Bolinhas

- Mãe, você tem que mudar de trabalho...
- Por quê?
- Mãe, a senhora é recepcionista de uma academia de musculação.
- E o que tem?
- O que tem, o que tem, uai...
- O que tem?
- A senhora tem que trabalhar onde eu trabalho.
- E por quê?
- Lá que é bom, mãe. Lá tem piscina de bolinhas.

- Eu não gosto dessas coisas, não tenho mais idade.
- Mãe, você não tá entendendo. Pode jogar videogame no intervalo.
- Ah, pode?
- Pode.
- Vou denunciar.
- Denunciar o quê, mãe?
- Denunciar essa empresa.
- ?
- Isso é trabalho infantil, menino!

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

9) Biscoito ou Bolacha ou A Quarta Guerra Mundial

1. Passei a receber jornais futuristas em 2009, quando visitei o ano de 2037 pela primeira vez.

2. E os jornais sobreviveram ao tempo?

3. Sim. São um pouco diferentes dos atuais. Não há quem os escreva. Eles apenas registram os passos de todos e todas as coisas.

4. Estou lendo um pós-apocalíptico que mostra como se iniciou a Guerra Mundial.
5. Não muito diferente de todas as outras guerras, a quarta se deu por uma trivial disputa ideológica. 

6. Qual o termo correto de um suposto alimento: "Biscoito" ou "Bolacha"?

7. Quem está duvidando da minha visita ao futuro (não da Guerra, já que é óbvio que guerras sempre existirão) pode conferir vindo aqui em casa.

8. Rua Hélia Ricaldoni de Freitas, 1040, Casa 5. Serrano. BH. MG. Brasil. Terra. Via Láctea.

9. A última função da máquina de lavar, depois da centrifugação, é a de Viagem no Tempo.

10. Só é preciso bastante água, pouquíssima roupa e um amaciante pra deixar tudo mais confortável.

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

8) 8101 ou Uma Gota Fora do Oceano

Ela sacou da mochila um livro e perguntou se eu já tinha lido aquele exemplar que a sua mão agora mordia.

- Esse eu não li, mas li um outro dele. O nome é “Um rio chamado tempo e uma casa chamada terra”.
- É a primeira vez que o leio. Eu curto. Ele brinca com as palavras.

Me falou isso como se tivesse descoberto a América. Estou cansado de autores que “brincam” com as palavras. Brincam tanto que esquecem de dizer algo. Literatura não é playground.

Omiti minha opinião, apenas emendei que preferia o Guimarães Rosa. 

Ela, indo para o Recife fazer mestrado. Eu, olhando mais para a sua boca do que seus olhos, quando dos lábios ouço um...

- Você é uma pessoa séria, Leandro.
- Eu?
- É. Você se considera uma pessoa séria?
- Acho que não.
- Você aceita qualquer tipo de brincadeira?
- Aceito.

Não respondi assim, rápido, como você leu. Fiquei pensando. O que seria uma pessoa séria? Eu sabia dizer até o momento dela me perguntar.

Depois me disse que ela, sim, não aceitava qualquer tipo de brincadeira, era a tal séria e por isso “sou desse jeito”. E sorriu.

De que jeito? Com aqueles óculos engraçados que mal cabiam nos olhos? Eu nunca tinha a visto como uma pessoa séria. Até porque eu não sabia o que era a tal seriedade.

“Sou desse jeito”, pediu para que lhe enviasse e-mails, desceu do ônibus e foi para o Recife.

Assim que eu chegasse ao trabalho - pois era pra lá que estava indo, não para Pernambuco -, procuraria no dicionário virtual a maldita palavra "sério".

Pessoa séria é para adultos. Eu ainda conservo aquela velha história de não confiar em ninguém com mais de trinta anos. A questão é que eu já tenho trinta anos. E dentro de mim já excluo os jovens como parâmetro de confiança. Tenho todos os requisitos para comprar um relógio e manter o cabelo aparado. Eu começo a me excluir, então. Tudo para me integrar.


É aquela velha história – acho que do zen-budismo -, uma gota fora do oceano é apenas uma gota. Uma gota no oceano... é oceano.   


segunda-feira, 21 de agosto de 2017

7) Tobias ou O Vira-lata Que Sonhou Conosco

Encontramos o cachorro no gramado entre o CAD e a Letras. Abanou o rabo (daquele jeito de dizer felicidade) e pulou em nós. Alguém no fim da rua gritou "Tobias!". Não era com o cachorro, mas serviu como nome pro animal. Levamos o Tobias à casa da Clarissa. Foi nos acompanhando, tranquilo, até o Jaraguá, sussa como uma nave, mas nunca me esqueci de que ele era apenas um cachorro. Em casa, demos um rango, separamos água e tapete para ele dormir. Preferiu o sofá. Achamos sensato. Dormiu cada um no seu canto. Tobias no segundo andar, nós no primeiro
(Um cachorro parecido com o Tobias que encontrei na Internet)
Noite boa, sem latidos ou choros, tanto de cachorros como de humanos. Acordamos cedo só pra ver se o Tobias estava bem. Estava. E também ficamos bem depois de saber que Tobias tinha sonhado conosco. No sonho, todos voavam. Voltei para a minha casa. Mais tarde soube que Clarissa, depois de um banho no Tobias e uma catação de pulgas, foi com ele até a faculdade se despedir. Observou o vira-lata cor de paçoca atravessar a Antônio Carlos. Pensou em chamá-lo de volta, adotá-lo, levá-lo pra fazenda dos pais, ficar mais um dia em sua companhia, no entanto, lembrou-se do sonho que ele teve conosco, o voo, a liberdade, e continuou a observá-lo atravessar o asfalto e se reunir contente com suas verdadeiras companhias de quatro patas. 

domingo, 20 de agosto de 2017

6) MC Livinho e a Máfia Italiana

- Tem jeito de você cortar o meu cabelo igual ao do MC Livinho?
- Tem.
 Cabelo cortado. Olho para o espelho e nada do meu cabelo se parecer com o cabelo do MC Livinho.
- Não ficou parecido com o cabelo do MC Livinho.
- É porque o MC Livinho é o MC Livinho, né?
Paguei por mais essa frustração. Aquela frustração que é igual a de vestir um paletó na espera de se parecer com um gangster dos filmes de máfia italiana, e ao se olhar no espelho, amigo, você só precisa de uma bíblia nas mãos para ser um pastor evangélico.

sábado, 19 de agosto de 2017

5) Vodka ou Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças

Vez ou outra alguém vem me lembrar de algo que se recorda de eu ter dito, ou de um presente que ganhou de mim. Na maioria das vezes, me parece, cada um se lembra daquilo que mais lhe convém, claro, ou que foi mais marcante - ou sei lá por qual critério a gente grava umas coisas e esquece outras. É como se plantássemos memórias uns nos outros, sem ter a consciência de quanto isso pode afetar o HD alheio. 

Ou sem ter a consciência exata se do que dissemos, fazemos, ficarão ou não nas memórias alheias. Bem, dizem por aí que a memória não é exatamente um registro da realidade, mas uma interpretação da mente. Posso entender isso de algumas maneiras, uma delas é que minhas memórias se modificam conforme vou me recordando delas. Provavelmente alguém já te lembrou de coisas sobre você que esse alguém nunca esqueceu, mas você mesmo não se lembra. É só uma reflexão que talvez não chegue a nenhum leitor. Ou fique na memória de quem acabou de ler.

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

4) Micro Ensaio Sobre a Inutilidade ou As Palavras de Jodorowsky

Sempre fui uma pessoa inútil. Costumam juntar a inutilidade a coisas não práticas. Para os chamados úteis: arte é inútil, poesia é inútil. Basicamente tudo aquilo que não tem uma resposta (na maioria das vezes financeira) rápida, clara, objetiva, é inútil. É por isso que eu sou inútil. Até quitar boleto em lotérica, para mim, é subjetivo. 
Cena mítica e mística de "Holy Mountain" (1973)
Não sei exatamente o que faço com toda essa inutilidade. Já produzi bastante: gravei discos, editei vídeos, escrevi livro. E daí? Fico pensando naquilo que o Jodorowsky disse: "Fiquei dois anos sem produzir a arte que eu produzia, porque precisava fazer algo que não fosse apenas alimentar meu próprio ego". Isso mexeu muito com a minha cabeça.

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

3) Há Poesia nas Planilhas do Excel

Nunca imaginei que eu, uma pessoa tão subjetiva, sem qualquer senso prático, pudesse se dar tão bem com o Excel. Há um ano, me enfiei dentro de uma repartição pública para organizar um arquivo composto por processos financeiros.

Meus dedos, tão acostumados a preencher laudas de ficção no Word, tiveram de se familiarizar com planilhas complexas e recheadas de contratos, editais e recursos humanos. Se aos 19 anos eu me apaixonei por Kafka, aos 30 eu o compreendo como nunca. O absurdo não tem seis patas e nem anda pelas paredes, nem é um macaco que relata uma transformação pessoal para uma academia.
O absurdo é a própria academia a quem o relato é dado. Eu, um ser humano, com telencéfalo altamente desenvolvido e polegar opositor, não me atinei sobre a minha própria metamorfose burocrática. Dia a dia remexo o absurdo em pastas suspensas além de tramitá-lo às repartições vizinhas. Será que os irmãos Campos conheciam a poesia concreta dessa argamassa administrativa? Tudo isso para dizer que não apenas me tornei prolixo e desnecessário como este texto, a academia e as repartições, como agora as planilhas preenchidas do Excel são os meus novos sonetos.

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

2) Menino tenta imitar Super-homem e consegue!

Superman (George Reeves)
Cancelei minhas assinaturas de revistas e jornais para assinar um periódico diário de Ficção. Agora, todos os dias, recebo manchetes imperdíveis sobre coisas que não existem. Ontem, por exemplo, 15 do 7 de 1900 e 40 e 10, a manchete estampada na capa dizia: "Menino tenta imitar Super-homem e consegue!". Consumi ansioso a matéria que, resumindo, narrava um pulo sensato (era uma criança) pela janela do décimo primeiro andar de um apartamento no Barro Preto. O menino passa bem. E disse que não voltará antes de ter comido pelo menos metade dos algodões celestes.

terça-feira, 15 de agosto de 2017

1) Só o bom poema se basta

Um bom poema me dá um tesão danado. Mas só o bom poema. Poema erótico? Não, qualquer bom poema. Aquele que você levaria para o deserto, pois só um bom poema é alimento no deserto. Uma vontade de escalar as paredes do quarto, lamber a torneira da pia, beijar estranho no corredor do supermercado, morder uma maçã como quem morde um seio, uma bunda, um dedo. O bom poema. Somente. Destilado em Drummond, Hilda Hilst, Dante, Cecília Meireles. 
Drummond curtindo a vida na praia de Ipanema

O bom poema é um dedo no cu, uma massagem no grelo, um bom poema é Bomba de Antimoralidade, a cruz de cabeça pra baixo, a Igreja católica vomitando num banheiro químico.  É Hiroshima dentro de nós. "Meu Deus, por que me abandonaste se sabias que eu não era Deus se sabias que eu era fraco". Um copo de água e gelo e "A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços". 
Hilda Hilst fumando um cigarrinho esperto

E rodeia a sala com o copo molhado e fala: "Se eu disser que vi um pássaro Sobre o teu sexo, deverias crer?". E caminha procurando a porta, sinônimo de passagem, e "Existe a noite, e existe o breu. Noite é o velado coração de Deus". E se apega ao copo, ao formato do copo, joga o copo na parede. Não há mais portas, só percepção. "Deixai toda esperança, ó vós que entrais!", e depois suplica pelo copo perdido. Um bom poema dá um tesão danado e desidrata.