domingo, 25 de agosto de 2024

35) Inventando a realidade com os irmãos Lumière

Os irmãos Auguste (1862-1954) e Louis Lumière (1864) nasceram em Besançon, na França, e foram responsáveis pela criação do cinematógrafo Lumière, um aparelho funcional para registro e exibição de imagens. Com este mesmo aparelho, registraram três versões da famosa saída dos operários de uma fábrica, considerado o primeiro filme da história.


Esse pioneirismo criou outras faces, não apenas o cinema. Inventou personagens, público, cadeia produtiva, empresários, inventores, trabalhadores da cultura. A criação do cinema é a criação de espécies, funções, críticos e, mais do que todas essas coisas concretas, o cinema inventou um jeito de olhar.

A invenção da realidade

A invenção é o ato de criar algo. Nem sou eu quem diz, é o dicionário Aurélio. Ademais, criar o que “não pertence ao mundo real”. Os irmãos Lumière se tornaram famosos pelo invento da máquina que resultou na invenção do cinema. E os primeiros filmes eram “documentais”. Documentários, em linhas gerais, seriam os registros de um lugar, história, espaço ou pessoas no tempo, utilizando de uma câmera para a captação dessas imagens. Acontece que esses registros, por mais que tivessem captado a realidade, na verdade captaram a invenção da realidade. 

A realidade em preto e branco

Se as retinas de uma pessoa funcionam perfeitamente, não há um mundo em preto e branco. A realidade é substancialmente colorida. Diante das fotografias do século XIX e das primeiras imagens do cinema, aquilo do qual o espectador assiste é uma representação da realidade, cujas pessoas, objetos, luz, sombra e movimentos são exibidos em uma escala de cinza que parte do branco intenso ao preto mais saturado. Este talvez seja o primeiro aspecto com o qual os espectadores de Lumière se depararam logo nas primeiras exibições públicas.

As histórias dessas exibições são recheadas de lendas das quais a mais conhecida é a de que as pessoas se espantaram com o filme “A chegada de um trem na estação” (L’Arrivé d’un train à la Ciotat), como se a locomotiva viesse ao encontro delas e, apavoradas pela suspeita de que seriam atropeladas, fugiram do cinema. Mas não há relatos registrados da exibição em que tal anedota tenha de fato ocorrido. Provavelmente conscientes de que aquilo não passava de um filme, nascia ali um contrato e a invenção de um público que, aos poucos, foi acompanhando (com espanto ou não) todas as invenções próprias daquela arte incipiente.

Os primeiros personagens

Os primeiros personagens do cinema, como relatado no filme “Os Primeiros Filmes dos Irmãos Lumière” (The Lumière Brothers' First Films),  de Thierry Frémaux, são da classe trabalhadora, em sua maioria mulheres. 

Essas pessoas que aparecem no filme sabiam da existência da câmera e foram, possivelmente, informadas a não mirá-la diretamente. Isso denota um aspecto de performance, no sentido de que “é preciso se mostrar fazendo algo”, a “saída da fábrica”, mas sem que percebam “que estou participando desse ‘jogo”’. Nasce ali outra espécie de contrato, a de um personagem (ou persona que reconhece ser visto e assim performa) e a de um público (que vê a performance e a justifica). Se os trabalhadores não eram atores, foram os pais dos primeiros atores de cinema. E uma história estava sendo contada ali, com começo, meio e fim, organizados não numa montagem da qual D.W. Griffith seria o inventor, mas que já poderíamos chamar de  “a linguagem cinematográfica”, com movimentos (não de câmera) antecessores aos famosos cortes, como o portão sendo fechado, trazendo consigo o desfecho da narrativa.

Encenação do real

“A saída da fábrica Lumière em Lyon” traz elementos configuradores de uma narrativa ficcional, extrapolando o estilo documentário. É em “O almoço do bebê” (Le rpas de bébé) que a encenação do real começa a ganhar maiores contornos.

Três personagens: o pai (Auguste Lumière), a mãe (sua esposa) e o filho do casal, no centro. Direção do irmão Louis. A câmera está imóvel e enquadra de forma bem justa as personagens. Auguste alimenta o filho com gordas colheres de papa e um biscoito. A mulher sorve o líquido de uma minúscula xícara. Uma sequência encenada, não necessariamente ensaiada, mas performada para a câmera – uma encenação do real.

“A saída da fábrica Lumière em Lyon” traz elementos configuradores de uma narrativa ficcional, extrapolando o estilo documentário. É em “O almoço do bebê” (Le rpas de bébé) que a encenação do real começa a ganhar maiores contornos.

Três personagens: o pai (Auguste Lumière), a mãe (sua esposa) e o filho do casal, no centro. Direção do irmão Louis. A câmera está imóvel e enquadra de forma bem justa as personagens. Auguste alimenta o filho com gordas colheres de papa e um biscoito. A mulher sorve o líquido de uma minúscula xícara. Uma sequência encenada, não necessariamente ensaiada, mas performada para a câmera – uma encenação do real.

O caráter documental exibe seus últimos suspiros em “O regador regado” (L’Arroseur arrosé). Nesse sentido o título é bem sugestivo. Ele tem um trocadilho, diferente dos filmes anteriores, em que os nomes sugerem apenas o que se propõe a mostrar. O “regador regado” propõe mostrar o que intitula mas como uma gag. Uma narrativa simples, enquadrada em câmera imóvel, o regador, próximo ao canto esquerdo de quem vê, está regando o jardim com uma mangueira, quando, de repente surge um rapaz e pisa na mangueira. Por um período curtíssimo de tempo, o regador se espanta com a falta de água do objeto de trabalho. Quando menos espera, o rapaz retira o pé sobre a mangueira e a água jorra forte no rosto do regador. Depois, o regador busca o rapaz pelas orelhas, castigando-o. O curioso é que o rapaz sai de cena olhando para a câmera. Claramente a performance se torna uma atuação deliberada. O real é transcendido e se torna invenção.

Novo jeito de olhar
O filme “A chegada de um trem na estação” (L’Arrivé d’un train à la Ciotat) traz um início de sequência bem interessante. Um personagem, que aparentemente puxa uma carroça, sai de quadro aos poucos. No plano de fundo, vemos a locomotiva se aproximar: o antigo sendo substituído pelo moderno. A câmera é muito bem colocada para que possamos perceber o movimento do trem. Quando o trem “atravessa a tela” e continua a se locomover, surgem diferentes luzes vindo de suas janelas e portas, e diferentes pessoas se aproximam para o embarque e o desembarque de passageiros. As portas se abrem, tudo é bastante movimentado. É uma proeza o que os irmãos Lumière fazem com a câmera estática. Eles sabiam que o grande diferencial de sua máquina era o movimento, por isso abusam dessa peculiaridade, inventando um de um jeito de olhar o real.

Este foi o presente dos irmãos à cultura, mais do que a invenção da máquina que possibilitaria tal efeito. Não apenas inventaram como souberam manuseá-la para encantar (e ao mesmo tempo criar) os espectadores, personagens, situações, narrativas, filosofias, pensamentos, ideologias, propagandas. Inventaram o documentário que, desde a sua fundação, dialoga com o ficcional e o performático.

Logo perceberam o que diretores posteriormente fariam: o jogo de cena. Se não inventaram de fato a linguagem cinematográfica, sugeriram aos que viriam. É nesse sentido que a realidade em preto e branco tornou-se muitas vezes mais real do que a do cotidiano colorido.

Olhar com uma câmera é olhar mais de uma vez e, dessa forma, inventar e reinventar o real.

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

34) Não sei fazer o que faço, mas como faço, parece que sei

Segundo pesquisas nem um pouco avançadas, a carta coringa foi inserida no baralho — aquele mesmo que a gente usa para atravessar tardes de buraco com a tia do mezzo amigo — no ano de 1863, por Euchare. A intenção era simples: uma carta que, no contexto de cada jogo, substituiria as demais.

E, como diria o antigo anúncio da Nextel, esse é o meu clube, essa é a minha vida.

"Vai, Diogo, ser coringa na vida”, foi o que o anjo torto me falou. E muitos outros anjos tortos, retos, oblíquos; ou demônios, budas, as tias que jogam baralho, então, continuam a me falar.

É que o meu nome costuma surgir em resposta às necessidades cada vez mais diversas. Nada como um exemplo em itálico para dizer melhor do que eu (apesar que, baseado em acontecimentos, criei o exemplo em questão).

Diogo, tudo bem? É o seguinte. Vou fazer uma viagem com a minha namorada durante quinze dias, neste fim de ano. Só que têm os nossos gatinhos e plantas aqui. Você poderia cuidar da casa durante essas semanas? Eu vou te pagar, é claro.

(Que final lindo: “Eu vou te pagar, é claro”).

Ainda carregava comigo a dúvida fatal, “Gatos são pessoas confiáveis?”. Pessoas, talvez não. Confiáveis, entretanto, foi fácil descobrir ao aceitar a proposta. Eles quase sempre estão na deles. Aproximam-se sorrateiramente à guisa de um enroscar de pernas alheias e miam somente quando a ração ensaia chegar ao fim. A ração nunca chega ao fim. Eles gostam de coisas frescas. Um troca-troca eterno. Vale para a água também. Eles são amorosos e pouco carentes, como bons namoros humanos. E dá uma vontade fudida de apertá-los. Gritam e saem em disparada quando isso acontece, mas retornam com a cara de aroeira e a memória curta de uma mosca que pousa em joelhos.

Tudo isso e mais uma dezena de coisas aprendi ao dizer “sim, posso cuidar dos seus gatos muito bem”; mas isto daqui não é um cartão de visitas.

Diogo, como vai? Vê se dá pra você fazer uma coisa pra mim. É o seguinte, acabei de alugar uma loja aqui no bairro XXX para vender minhas coisas. Tô muito feliz! A gente vai inaugurar em julho. Deixa eu te perguntar, não sei você faz isso, mas acho que sim. Será que dá pra criar uns vídeos pra gente? Pra postar no Instagram. Aí, me fala quanto você cobraria.

(Ai, que final genial, quase um plot twist, se eu já não esperasse por ele)

Mais uma dúvida pairava sobre a minha cabeça, “Humanos são pessoas confiáveis?”. Pessoas, sim. A dúvida real era: eu sei filmar? Filmar e editar? Parece que sim. Tenho vídeos. Já produzi alguns experimentais e outros mais “normais”. Mesmo que eu não saiba de fato, se eu arrumar uma câmera, posso improvisar. Eu posso fazer isso. Digo “sim”. Os pormenores da câmera profissional pego com um tutorial no Youtube. Eu já sei editar. Aprendi naquela vez em que estava doente da cabeça e não tinha nada mais eficaz para tirar o meu tédio do que a assistir e praticar horas com o Matheus do Brainstorm Tutoriais. E, claro, o tempero criativo sempre surge quando as coisas urgem pelo erro.

Uso a tática de filmar o máximo de imagens que consigo, com um roteiro em mente, pensando nos movimentos de entrada e saída dos cortes. Sei, como editor bissexto, que a pós-produção é capaz de fazer portentos e que a ação é a melhor escola. Sempre repito, em tom de brincadeira, que odeio audiovisual, o que não é totalmente mentira, mas é que trabalhar com tecnologia requer uma paciência de Madre Teresa para os problemas que inevitavelmente virão. Problemas resolvidos. Trabalho entregue.

Dessa vez, é o próprio Diogo que chega com a pauta. É o seguinte, pensei em divulgar espaços da UFMG que vão além das salas de aula, espaços de cultura e lazer. Assim, de forma mais geral. E aí a turma retruca: Legal! Mas você consegue criar os textos e as imagens? Mini fudeu. Aquele fudeu tímido e sorrateiro, que traz em si um problema pretensamente não solucionável mas, com um esforcinho, a solução doce de um Toddy poderá surgir. Textos? Beleza. Imagens? Xiii.

Em algum momento, comecei a entender de composição visual: os pesos, as medidas, a relação entre as cores. Primeiramente pelo simples prazer de fazer arte ou pela necessidade de me expressar e, por último, pela graduação que inventei de ser aluno já com 30 anos de idade. Ai de mim.

O trabalho com imagens, porém, ainda é novidade. Passei muitos anos pensando somente no texto ou em música — claro que o texto também é uma composição, com medidas (de ritmo, de palavras, de ideias) com cores (no caso de imagens, intenções, texturas até) e a música, nem precisa citar, é uma composição no que a expressão tem de mais literal.

Mas as imagens vinham a reboque, apenas para “ilustrar” tais ideias, contextos, dizeres. Vinham em capas de zine, em thumb de vídeos, mas não como uma expressão que terminasse em si mesma. E sem que eu pensasse sobre elas ou me importasse muito — isso se dá até no meu vestir.

Usar, agora, as imagens com a intenção de passar uma mensagem, é ainda mais novo. Sofro feito barata sob chinelo com as inúmeras validações que esse tipo de trabalho envolve e o quanto ele exige de estudos, seja por livros, vídeos, tutoriais de programas e o conhecimento das “regras de ouro” composicional. E não posso negar que faço porque assim me pedem as necessidades, pois a minha cabeça quer sempre ficar à toa para reler o canto VI da Ilíada, dar uma volta de bicicleta em torno da lagoa da Pampulha ou olhar para o nada.

Não me agrada de todo esse fazer da imagem; ultimamente, porém, por estar diante dessa linguagem, encontro em cartazes, tipografias e construções das mais diversas, a beleza do equilíbrio. A bagunça, o excesso e a desordem ainda fazem meu coração bater mais forte, não dá para negar. A mistura entre as duas paixões talvez seja o mix essencial que só pimentas exóticas são capazes de fazer.

Em resumo, nesta vida desmembrada do século XXI, em que ter uma profissão é quase um privilégio, vale, na tentativa de estar vivo, ser um Pierrot a desejar não apenas Colombina, mas os zanni, os vecchi e todas as personagens da Commedia Dell'arte — vá lá, se eu soubesse fazer o que faço, provavelmente eu não o faria.

Daí que um anjo torto, sobre um caixote de feira, em frente ao edifício Dantês, grita para o megafone: Vai, quem quer que seja, ser Coringa na vida!

33) O trabalho da morte

Parte um

Eu colocava, diariamente, chapas acrílicas sobre uma máquina – cuja invenção era do meu pai –, com o poder de esquentar e traçar uma linha fervente sobre essas chapas. Daí o acrílico amolecia e se tornava dobrável naquele ponto. Eu, de forma cuidadosa, dobrava a peça para que a fronte ficasse visível – geralmente pouco abaixo do lettering – e a parte de trás tornava-se o pé, fazendo com que a peça se sustentasse pelo próprio peso, sem o uso de parafusos, pregos ou qualquer outro tipo de apoio. Meu pai “tinha as manha”. Eu também ficava responsável por “plotar” os adesivos. Um truque, que ele me ensinou para não dar bolhas, era colocar, sobre a superfície, uma mistura de água e detergente e depois vir com o adesivo. Daí eu empurrava, com uma espátula (também criada por ele), a água sob o adesivo enquanto colava os plásticos sobre as peças. Esse trabalho aconteceu durante seis meses em um momento importante da minha vida: eu tinha deixado de trabalhar como repositor do Epa, depois da tentativa malograda de conciliar o trabalho com um cursinho pré-vestibular.

Parte dois

O desejo “de que ele estivesse vivo” se deve, primeiramente, a uma resposta ao fato: meu pai está morto. Além do mais, esse desejo não tem a ver com o fato de não ter aceitado a morte dele — muito provavelmente o contrário. Talvez eu estivesse aceito antes que ele viesse a falecer. Trabalhei isso diligentemente na minha cabeça desde pequeno. Meu pai foi um grande fumante, daqueles clássicos. Só perdia para os que iam comprar cigarro e desapareciam. Então, algo me dizia (provavelmente a televisão e o Drauzio Varella) que ele não duraria muito tempo. Não posso negar algo concreto: meu pai desapareceu também. Por quê? Porque as coisas desaparecem. Das pessoas aos cigarros. Das cadeiras às abelhas. Dos prédios ao mar. Este é o trabalho da morte — e ela nunca descansa. Do amor… talvez seja permanente. Esse querer que ele estivesse vivo surge porque tenho aprendido coisas que gostaria de compartilhar com o meu pai. Coisas com as quais eu poderia ajudá-lo: retribuir. Se há um ano eu me olhava e dizia não ter aprendido nada, hoje penso que “não é bem assim”. Penso que já passei por diversos trabalhos. Durante muito tempo neguei ajudá-lo de fato. Sempre me via sem tempo, sem paciência para lhe explicar o que eu considerava óbvio — em relação a computadores, por exemplo. Sei o quão mesquinho é tudo isso. E também não existe nenhum remorso aqui ou sentimento de culpa. Penso de forma prática e isso não é tão bonito ou mesmo romântico, simplesmente a forma que tenho levado as coisas e, mais do que isso, como as coisas têm sido levadas – sabe-se lá para onde. Eu deveria ter um sentimento profundo em relação ao meu pai e a sua morte. Porém sou raso. Mais até do que isso: antiprofundo. A forma do meu pensamento é como uma chapa fosca de acrílico. Eu poderia ter criado um perfil profissional para ele. Ter feito roteiros para vídeos, filmado o seu trabalho, criado peças gráficas, desenvolvido textos. Podia, basicamente, fazer o marketing do meu pai e dos seus trabalhos como artesão e motorista de van. Parece um pouco cruel, capitalista, prático demais: mas gostaria que meu pai estivesse vivo para que trabalhássemos juntos.

Parte três ou final

Algum psicanalista dirá que tal relato não passa do complexo não de Édipo ou de Hamlet mas de Marx. Fará uma ligação entre Freud, Jung, Winnicott e Lacan e dizer “a gente se encontra na próxima?”, depois de me ouvir por quarenta minutos. Falar que o meu inconsciente tem se aflorado a partir da minha escrita e de meus desejos expressos verbalmente. E quando eu trocar a palavra “pai” por “mãe”, nós vamos rir juntos e vamos emendar: “Freud explica”. Mas sei que também explico e, preferencialmente, de forma superficial. Aquele momento em que trabalhei com o meu pai foi uma espécie de curso intensivo da nossa relação. Nunca estive tão próximo a ele. Enquanto colava os adesivos, e ele desenhava alguma nova peça no seu caderno pautado, e a rádio Oi tocava o melhor do pop internacional, a gente criava a relação de pai e filho. Ali, naquele galpão que foi outrora uma igreja, a gente se perdoava. Mais precisamente — e me sacudiu a lembrança agora — de uma briga “na mão” que tivemos meses antes. Não só. A gente se perdoava pela displicência e falta de tato de ambos durante anos, cuja troca de afetos era expressa apenas na troca de presentes materiais – enxergo tijolos encadeados transformando-se em um muro. Acredito que toda essa pedagogia corria ali, mesmo que de maneira implícita e, agora, com uma câmera do tempo, posso melhor mapeá-la. Era no fazer do trabalho, rodeado de plástico, cola, detergente, música popular e tempo desacelerado que a coisa se dava. Enquanto ele me explicava como o trabalho deveria acontecer e depois sumia por uma hora para comprar suprimentos, eu tentava fazer o melhor que podia. Naqueles dias meu pai parecia, como nunca antes, calmo. Tal como o presenciei na minha primeira infância: época cujas necessidades materiais estavam supridas e, felizmente, elas me encontravam míope diante do terror.

32) Viver o que deveras finge

Parte um

Plantamos memórias uns nos outros, sem ter a consciência de como isso pode afetar o HD alheio, ou mesmo sem ter a menor noção se do que dissemos ou fizemos ficarão ou não nos quadros mentais de uma pessoa. Uma frase escorregadia, um beijo atravessado que pega um canto de boca, um elogio, uma traição, uma crítica negativa, um olhar estranho, um movimento às escondidas porém visto, um “bom dia” bem educado, uma frase solta, uma piada, uma mentira, um soco na cara. Qualquer ação vinda de nossos corpos pode ser subscrita no HD de outra pessoa, e de que maneira?, a gente fica sem saber. Algumas dessas memórias implantadas serão aos poucos esquecidas — ou melhor, não terão a relevância que as façam surgir tão cedo sobre a imaginação; basicamente, não é um jingle das Lojas Lua de Mel —, mas, algumas dessas ideias, as mais marcantes, impregnam na memória de alguém como Big Big sob uma carteira de escola pública. Dizem que a memória não é exatamente um registro da realidade, mas uma interpretação da mente. É preciso entender também que a memória é o passado com os olhos do presente. Quando retornamos àquela imagem, não é como se apenas assistíssemos a um filme de novo, mas como se dirigíssimos esse filme mais uma vez, com novos equipamentos, uma nova atriz, quem sabe, um final surpreendente, uma fotografia noir... Posso entender isso de algumas maneiras, uma delas é: as memórias se modificam conforme nos recordamos delas; até porque somos uma nova pessoa a cada lembrança, assim como as lembranças se renovam a cada curso. E essas palavras são apenas reflexões que talvez não cheguem a um leitor — ou fiquem na memória de quem acabou de ler.

Parte dois

Fingir não é de todo ruim: olhe os atores da tevê, do cinema e do teatro; olha o Fernando Pessoa, que finge o que deveras sente. Finjo que os meus sonhos são figurinhas e vou colando-os num álbum de desejos, sem que esse álbum jamais se complete. Mais do que isso: nenhum desses sonhos vai se “realizar”, mas é justamente na impossibilidade que mora a graça. Fingir é só uma forma de dizer: eu crio um mundo em que sou nele exatamente o que quero ser, sendo assim, abandono pódios, picos de montanhas e vivo as ideias da minha cabeça, sem que precise chegar a algum lugar ou ter alguma coisa para que isso realmente exista e, caso exista, finjo que não é comigo. Parece estranho, mas algo me diz que vivo exatamente assim. A imaginação não apenas me alimenta, ela me move. Eu imagino, às vezes, que poderei ser um quadrinista, e aí eu vou sendo, com a tinta guache que é barata e eu posso comprar, com os papeis sulfites que amontoam pela casa, com as ideias que surgem à minha cabeça, com os desenhos feios que, pela feiúra, realizam o possível, não o ideal. O ideal é o horizonte, eu tento recordar sempre. Eu posso ser Paris ao recitar versos de Jacques Prévert? Imagino que sim, mas não apenas imagino, o faço. Recito os poemas com o pouco ou quase nada de língua francesa que tenho. E depois me dá uma vontade daquelas de fumar e tomar um café; não vou fazê-lo, mas é bom ter vontade. Tento manter uma seriedade desprentensiosa em relação aos sonhos, de modo que eu nunca deixe de fazer as coisas por conta do que acontece no mundo, como ele se movimenta, as demandas da velocidade, do dinheiro etc. Viver o que deveras finjo é o meu lema: colo mais uma figurinha no meu álbum, a penútlima. É um álbum feito apenas de penúltimas figurinhas.

Parte três ou final

Coloco Vidas Passadas (Celine Song, 2023) para rodar, numa noite em que o dia só seguiu a sua marcha e nada poderia acontecer de extraordinário — isso eu poderia afirmar categoricamente se o extraordinário não fosse o ordinário no momento certo. Dou início ao filme sem saber nada dele, a não ser a indicação dita por um par de olhos bonitos: “Você tem que assistir”. Se séries não me pegam há anos, filmes sabem chegar de mansinho e, já numa cena inicial, são capazes de me transformar em um espectador atento. A primeira cena de Vidas Passadas, como saberemos mais à frente, se passa em Nova Iorque. Três personagens que um narrador em off nos apresenta, como se ele tivesse os mesmos olhos que os nossos: olhos de quem vê pela primeira vez. Três personagens sentados num balcão de um bar, sendo dois deles de ascendência asiática, estão próximos, parecem ter certa intimidade; e outro personagem meio de lado, demonstrando que poderia não estar ali, mas, como está, permanece como pode, desajeitado. O filme corta para Seul e mostra a vida de dois adolescentes, que serão os protagonistas dessa história, e que são os mesmos dois que estão mais próximos no bar. Eles escondem uma paixão platônica, mas isso só se torna mais evidente quando a menina diz que vai embora para o Canadá; não apenas diz, vai. Depois disso, os anos passam em ciclos de 12. 12 anos depois, portanto, o menino, agora adulto, encontra a menina, agora adulta, no Facebook, e entra em contato com ela, reatando uma relação que pareceu chacoalhar mais a cabeça dele durante todos esses anos do que a dela. Ela se lembra dele, claro, foram melhores amigos, mas a lembrança que ele carrega tem algo a mais, não à toa o motor de sua busca para encontrá-la. Passam a conversar quase que diariamente de forma online e descobrem que têm vidas bem diferentes, mas tudo é amistoso e apaixonante; até que a praticidade da vida cotidiana venha transformar o “e se” em “não dá”. Quando estaria certo de que eles se reencontrariam, os contratempos os afastam. Dentro desse novo ciclo de 12 anos, a mulher, que é uma escritora, inicia uma nova relação com um também escritor, norte americano. A primeira cena do filme, entao, é esse reencontro entre os dois, mais um: os amigos da adolescência se revisitando 24 anos depois, mais o marido dela. Guardarei o desenrolar dos acontecimentos para quem vai assistir ao filme. Na Coreia, a palavra “In-Yun”, pode ser traduzida como “destino” ou “providência”. O conceito fala de como a conexão entre duas pessoas é um sinal de que esse encontro aconteceu em vidas passadas. Essa ideia fica evidente em relação aos dois amigos, mas o interessante é aplicarmos o mesmo conceito ao casamento do marido e da esposa.

31) Autonomia e mutualismo

O filme Her (2013), de Spike Jonze, conta a história de Theodore, um escritor que, depois de se separar da sua última esposa, começa a se relacionar com um sistema operacional. As mudanças sofridas pela personagem principal, a partir de sua interação com o sistema, que tem o nome de Samantha, é o mote principal do filme.

Depois de algumas tentativas frustradas em se relacionar amorosamente com humanos, Theodore compra esse dispositivo – que se comunica através de uma voz feminina e lembra um smartphone, com uma câmera capaz de “ver”, ou melhor, catalogar e interpretar aspectos da realidade, ou seja, os dados fornecidos pelo mundo.

Conforme a relação entre as personagens avança, o sistema operacional se atualiza, a ponto de se encaixar dentro dos desejos de Theodore. Essa relação se torna cada vez mais íntima e personalizada e, dessa forma, Theodore se apaixona pela Inteligência Artificial, tal como Samantha diz também estar apaixonada por ele.

Esse é um ponto interessante, pois não dá para saber se Theodore se apaixonou pelo que o sistema pode imitar da vida humana, ou se ele se enamorou das suas próprias carências correspondidas pelo sistema operacional. Nesse caso, Theodore e Samantha parecem se influenciar mutuamente, como um ouroboros tecnológico. Inclusive, uma relação difícil que Theodore tinha com suas obrigações burocráticas, como responder a emails, foi sanada por Samantha, assim como o seu sonho de publicar suas cartas em um livro impresso também foi possível após Samantha “intuir” esse desejo — esse aspecto de máquinas como seres femininos e subalternos são recorrentes na ficção científica, e denota uma misoginia latente, vide os robô d’Os Jetsons e a Alexa, da Amazon.

Pensando mais especificamente em Samantha, para que ela interprete dados e dê respostas críveis para Theodore, são necessários esses mesmos dados e os cálculos algorítmicos em busca de uma resposta dedutiva, como funcionaria o aprendizado de máquina na vida real, lembrando sempre que estmaos tratando de um filme, uma extrapolação dessas tecnologias. Samantha, quando parece se autonomizar, ou seja, ter vida própria, segue apenas determinado script que seus algoritmos são capazes de calcular, no fundo, ela no fundo não é autônoma. Nada está fora do previsível, mas o que se espera de uma máquina é que ela não nos coloque em dúvida se ela é uma máquina ou não. Na ficção científica, esse jogo do parecer está sempre em jogo. Quando Theodore já não sabe mais distinguir Samantha do que seria uma pessoa real, temos o sucesso do teste de Turing. Temos Theodore e Samantha como um só, uma despedida da interface, no mais alto grau.

Mas quando pensamos em autonomia de máquina, ela não aponta apenas para uma humanização, porém para a independência dessa máquina, e isso o filme parece propor. Quer dizer, ela é autônoma ao passo que consegue realizar coisas sem que haja um script, sem que alguém a peça para isso, sem haja um prompt - apesar que a interação com Theodore cumpre esse papel. Samantha não só responde a perguntas, como as propõe, assim como busca solucioná-las. Podemos extrapolar um pouco, como faz o filme. Imagine que você deixe o seu computador ligado enquanto vai trabalhar e, ao retornar, sem que tenha pedido, ele organizou os seus arquivos, enviou um e-mail para o seu orientador de pesquisa e ainda deixou um “boa noite” como papel de parede. A autonomia de uma máquina, nesse sentido, extrapola o teste de Turing, vai além do “jogo da imitação”. Mas também extrapola o aspecto dedutivo-conexionista do aprendizado de máquina.

No último ato do filme, depois que Samantha sugere que Theodore saia com outras pessoas, e de ela assumir mais tarde ter tido ciúmes, ela dá outro passo em direção à autonomização. Ela diz a Theodore que tem um grupo de pesquisa e está saindo com um tal de Alan Watts – que é uma Inteligência Artificial baseada no teórico budista que de fato existe. Diz também que conversa com outras pessoas. Theodore, inseguro, pergunta se ela ainda está apaixonada por ele. Ela diz que sim, embora não apenas por ele, por mais 641 pessoas.

O que acontece é que Samantha, por ser uma Inteligência Artificial avançada, com um banco de dados incomensurável feito a Biblioteca de Babel de Borges, consegue realizar coisas que seria humanamente impossível. Tentemos abstrair o que seria se “apaixonar” nesse caso. Mas a sua realização não é a de uma pessoa: ela só está cumprindo um papel. Ela não tem sentimento. É uma máquina fazendo cálculos matemáticos - é sempre bom lembrar.

Algo mais acontece no filme. Samantha não pode ser humana, e essa insatisfação, de não ter um corpo, a faz emular certa "melancolia", que logo é extinguida quando ela se assume como máquina, e como propõe atingir todo o seu potencial se autoafirmando.

Por fim, Samantha começa também a ter “desejos” – a partir da imitação de desejos de Theodore – e vai atrás de "saciá-los" -- melhor, cumprir mais essa tarefa; desejos esses que vão além do que Theodore pode lhe proporcionar, desejos que vão além de Theodore, desejos que se autonomizam, num mutualismo que tende à autonomização. E, então, Samantha já não é – ou nunca foi, como ela mesma explica no fim – uma Inteligência Artificial exclusiva de Theodore, pelo contrário, ela se relaciona com mais oito mil pessoas, o que gera ciúmes em Theodore, abalando o seu ego.

Theodore deseja ser feliz através de pessoas ou máquinas que o façam feliz – melhor, que faça apenas ele feliz, a mais ninguém. Um sentimento que incorre em outros quanto: o egoísmo, o ciúme. Talvez falte a Theodore certa autonomia - e talvez não tenha, porque é real, diferente de Samantha.