sexta-feira, 16 de agosto de 2024

33) O trabalho da morte

Parte um

Eu colocava, diariamente, chapas acrílicas sobre uma máquina – cuja invenção era do meu pai –, com o poder de esquentar e traçar uma linha fervente sobre essas chapas. Daí o acrílico amolecia e se tornava dobrável naquele ponto. Eu, de forma cuidadosa, dobrava a peça para que a fronte ficasse visível – geralmente pouco abaixo do lettering – e a parte de trás tornava-se o pé, fazendo com que a peça se sustentasse pelo próprio peso, sem o uso de parafusos, pregos ou qualquer outro tipo de apoio. Meu pai “tinha as manha”. Eu também ficava responsável por “plotar” os adesivos. Um truque, que ele me ensinou para não dar bolhas, era colocar, sobre a superfície, uma mistura de água e detergente e depois vir com o adesivo. Daí eu empurrava, com uma espátula (também criada por ele), a água sob o adesivo enquanto colava os plásticos sobre as peças. Esse trabalho aconteceu durante seis meses em um momento importante da minha vida: eu tinha deixado de trabalhar como repositor do Epa, depois da tentativa malograda de conciliar o trabalho com um cursinho pré-vestibular.

Parte dois

O desejo “de que ele estivesse vivo” se deve, primeiramente, a uma resposta ao fato: meu pai está morto. Além do mais, esse desejo não tem a ver com o fato de não ter aceitado a morte dele — muito provavelmente o contrário. Talvez eu estivesse aceito antes que ele viesse a falecer. Trabalhei isso diligentemente na minha cabeça desde pequeno. Meu pai foi um grande fumante, daqueles clássicos. Só perdia para os que iam comprar cigarro e desapareciam. Então, algo me dizia (provavelmente a televisão e o Drauzio Varella) que ele não duraria muito tempo. Não posso negar algo concreto: meu pai desapareceu também. Por quê? Porque as coisas desaparecem. Das pessoas aos cigarros. Das cadeiras às abelhas. Dos prédios ao mar. Este é o trabalho da morte — e ela nunca descansa. Do amor… talvez seja permanente. Esse querer que ele estivesse vivo surge porque tenho aprendido coisas que gostaria de compartilhar com o meu pai. Coisas com as quais eu poderia ajudá-lo: retribuir. Se há um ano eu me olhava e dizia não ter aprendido nada, hoje penso que “não é bem assim”. Penso que já passei por diversos trabalhos. Durante muito tempo neguei ajudá-lo de fato. Sempre me via sem tempo, sem paciência para lhe explicar o que eu considerava óbvio — em relação a computadores, por exemplo. Sei o quão mesquinho é tudo isso. E também não existe nenhum remorso aqui ou sentimento de culpa. Penso de forma prática e isso não é tão bonito ou mesmo romântico, simplesmente a forma que tenho levado as coisas e, mais do que isso, como as coisas têm sido levadas – sabe-se lá para onde. Eu deveria ter um sentimento profundo em relação ao meu pai e a sua morte. Porém sou raso. Mais até do que isso: antiprofundo. A forma do meu pensamento é como uma chapa fosca de acrílico. Eu poderia ter criado um perfil profissional para ele. Ter feito roteiros para vídeos, filmado o seu trabalho, criado peças gráficas, desenvolvido textos. Podia, basicamente, fazer o marketing do meu pai e dos seus trabalhos como artesão e motorista de van. Parece um pouco cruel, capitalista, prático demais: mas gostaria que meu pai estivesse vivo para que trabalhássemos juntos.

Parte três ou final

Algum psicanalista dirá que tal relato não passa do complexo não de Édipo ou de Hamlet mas de Marx. Fará uma ligação entre Freud, Jung, Winnicott e Lacan e dizer “a gente se encontra na próxima?”, depois de me ouvir por quarenta minutos. Falar que o meu inconsciente tem se aflorado a partir da minha escrita e de meus desejos expressos verbalmente. E quando eu trocar a palavra “pai” por “mãe”, nós vamos rir juntos e vamos emendar: “Freud explica”. Mas sei que também explico e, preferencialmente, de forma superficial. Aquele momento em que trabalhei com o meu pai foi uma espécie de curso intensivo da nossa relação. Nunca estive tão próximo a ele. Enquanto colava os adesivos, e ele desenhava alguma nova peça no seu caderno pautado, e a rádio Oi tocava o melhor do pop internacional, a gente criava a relação de pai e filho. Ali, naquele galpão que foi outrora uma igreja, a gente se perdoava. Mais precisamente — e me sacudiu a lembrança agora — de uma briga “na mão” que tivemos meses antes. Não só. A gente se perdoava pela displicência e falta de tato de ambos durante anos, cuja troca de afetos era expressa apenas na troca de presentes materiais – enxergo tijolos encadeados transformando-se em um muro. Acredito que toda essa pedagogia corria ali, mesmo que de maneira implícita e, agora, com uma câmera do tempo, posso melhor mapeá-la. Era no fazer do trabalho, rodeado de plástico, cola, detergente, música popular e tempo desacelerado que a coisa se dava. Enquanto ele me explicava como o trabalho deveria acontecer e depois sumia por uma hora para comprar suprimentos, eu tentava fazer o melhor que podia. Naqueles dias meu pai parecia, como nunca antes, calmo. Tal como o presenciei na minha primeira infância: época cujas necessidades materiais estavam supridas e, felizmente, elas me encontravam míope diante do terror.

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