Segundo pesquisas nem um pouco avançadas, a carta coringa foi inserida no baralho — aquele mesmo que a gente usa para atravessar tardes de buraco com a tia do mezzo amigo — no ano de 1863, por Euchare. A intenção era simples: uma carta que, no contexto de cada jogo, substituiria as demais.
E, como diria o antigo anúncio da Nextel, esse é o meu clube, essa é a minha vida.
"Vai, Diogo, ser coringa na vida”, foi o que o anjo torto me falou. E muitos outros anjos tortos, retos, oblíquos; ou demônios, budas, as tias que jogam baralho, então, continuam a me falar.
É que o meu nome costuma surgir em resposta às necessidades cada vez mais diversas. Nada como um exemplo em itálico para dizer melhor do que eu (apesar que, baseado em acontecimentos, criei o exemplo em questão).
Diogo, tudo bem? É o seguinte. Vou fazer uma viagem com a minha namorada durante quinze dias, neste fim de ano. Só que têm os nossos gatinhos e plantas aqui. Você poderia cuidar da casa durante essas semanas? Eu vou te pagar, é claro.
(Que final lindo: “Eu vou te pagar, é claro”).
Ainda carregava comigo a dúvida fatal, “Gatos são pessoas confiáveis?”. Pessoas, talvez não. Confiáveis, entretanto, foi fácil descobrir ao aceitar a proposta. Eles quase sempre estão na deles. Aproximam-se sorrateiramente à guisa de um enroscar de pernas alheias e miam somente quando a ração ensaia chegar ao fim. A ração nunca chega ao fim. Eles gostam de coisas frescas. Um troca-troca eterno. Vale para a água também. Eles são amorosos e pouco carentes, como bons namoros humanos. E dá uma vontade fudida de apertá-los. Gritam e saem em disparada quando isso acontece, mas retornam com a cara de aroeira e a memória curta de uma mosca que pousa em joelhos.
Tudo isso e mais uma dezena de coisas aprendi ao dizer “sim, posso cuidar dos seus gatos muito bem”; mas isto daqui não é um cartão de visitas.
Diogo, como vai? Vê se dá pra você fazer uma coisa pra mim. É o seguinte, acabei de alugar uma loja aqui no bairro XXX para vender minhas coisas. Tô muito feliz! A gente vai inaugurar em julho. Deixa eu te perguntar, não sei você faz isso, mas acho que sim. Será que dá pra criar uns vídeos pra gente? Pra postar no Instagram. Aí, me fala quanto você cobraria.
(Ai, que final genial, quase um plot twist, se eu já não esperasse por ele)
Mais uma dúvida pairava sobre a minha cabeça, “Humanos são pessoas confiáveis?”. Pessoas, sim. A dúvida real era: eu sei filmar? Filmar e editar? Parece que sim. Tenho vídeos. Já produzi alguns experimentais e outros mais “normais”. Mesmo que eu não saiba de fato, se eu arrumar uma câmera, posso improvisar. Eu posso fazer isso. Digo “sim”. Os pormenores da câmera profissional pego com um tutorial no Youtube. Eu já sei editar. Aprendi naquela vez em que estava doente da cabeça e não tinha nada mais eficaz para tirar o meu tédio do que a assistir e praticar horas com o Matheus do Brainstorm Tutoriais. E, claro, o tempero criativo sempre surge quando as coisas urgem pelo erro.
Uso a tática de filmar o máximo de imagens que consigo, com um roteiro em mente, pensando nos movimentos de entrada e saída dos cortes. Sei, como editor bissexto, que a pós-produção é capaz de fazer portentos e que a ação é a melhor escola. Sempre repito, em tom de brincadeira, que odeio audiovisual, o que não é totalmente mentira, mas é que trabalhar com tecnologia requer uma paciência de Madre Teresa para os problemas que inevitavelmente virão. Problemas resolvidos. Trabalho entregue.
Dessa vez, é o próprio Diogo que chega com a pauta. É o seguinte, pensei em divulgar espaços da UFMG que vão além das salas de aula, espaços de cultura e lazer. Assim, de forma mais geral. E aí a turma retruca: Legal! Mas você consegue criar os textos e as imagens? Mini fudeu. Aquele fudeu tímido e sorrateiro, que traz em si um problema pretensamente não solucionável mas, com um esforcinho, a solução doce de um Toddy poderá surgir. Textos? Beleza. Imagens? Xiii.
Em algum momento, comecei a entender de composição visual: os pesos, as medidas, a relação entre as cores. Primeiramente pelo simples prazer de fazer arte ou pela necessidade de me expressar e, por último, pela graduação que inventei de ser aluno já com 30 anos de idade. Ai de mim.
O trabalho com imagens, porém, ainda é novidade. Passei muitos anos pensando somente no texto ou em música — claro que o texto também é uma composição, com medidas (de ritmo, de palavras, de ideias) com cores (no caso de imagens, intenções, texturas até) e a música, nem precisa citar, é uma composição no que a expressão tem de mais literal.
Mas as imagens vinham a reboque, apenas para “ilustrar” tais ideias, contextos, dizeres. Vinham em capas de zine, em thumb de vídeos, mas não como uma expressão que terminasse em si mesma. E sem que eu pensasse sobre elas ou me importasse muito — isso se dá até no meu vestir.
Usar, agora, as imagens com a intenção de passar uma mensagem, é ainda mais novo. Sofro feito barata sob chinelo com as inúmeras validações que esse tipo de trabalho envolve e o quanto ele exige de estudos, seja por livros, vídeos, tutoriais de programas e o conhecimento das “regras de ouro” composicional. E não posso negar que faço porque assim me pedem as necessidades, pois a minha cabeça quer sempre ficar à toa para reler o canto VI da Ilíada, dar uma volta de bicicleta em torno da lagoa da Pampulha ou olhar para o nada.
Não me agrada de todo esse fazer da imagem; ultimamente, porém, por estar diante dessa linguagem, encontro em cartazes, tipografias e construções das mais diversas, a beleza do equilíbrio. A bagunça, o excesso e a desordem ainda fazem meu coração bater mais forte, não dá para negar. A mistura entre as duas paixões talvez seja o mix essencial que só pimentas exóticas são capazes de fazer.
Em resumo, nesta vida desmembrada do século XXI, em que ter uma profissão é quase um privilégio, vale, na tentativa de estar vivo, ser um Pierrot a desejar não apenas Colombina, mas os zanni, os vecchi e todas as personagens da Commedia Dell'arte — vá lá, se eu soubesse fazer o que faço, provavelmente eu não o faria.
Daí que um anjo torto, sobre um caixote de feira, em frente ao edifício Dantês, grita para o megafone: Vai, quem quer que seja, ser Coringa na vida!
Nenhum comentário:
Postar um comentário