Os irmãos Auguste (1862-1954) e Louis Lumière (1864) nasceram em Besançon, na França, e foram responsáveis pela criação do cinematógrafo Lumière, um aparelho funcional para registro e exibição de imagens. Com este mesmo aparelho, registraram três versões da famosa saída dos operários de uma fábrica, considerado o primeiro filme da história.
Esse pioneirismo criou outras faces, não apenas o cinema. Inventou personagens, público, cadeia produtiva, empresários, inventores, trabalhadores da cultura. A criação do cinema é a criação de espécies, funções, críticos e, mais do que todas essas coisas concretas, o cinema inventou um jeito de olhar.
A invenção da realidade
A invenção é o ato de criar algo. Nem sou eu quem diz, é o dicionário Aurélio. Ademais, criar o que “não pertence ao mundo real”. Os irmãos Lumière se tornaram famosos pelo invento da máquina que resultou na invenção do cinema. E os primeiros filmes eram “documentais”. Documentários, em linhas gerais, seriam os registros de um lugar, história, espaço ou pessoas no tempo, utilizando de uma câmera para a captação dessas imagens. Acontece que esses registros, por mais que tivessem captado a realidade, na verdade captaram a invenção da realidade.
A realidade em preto e branco
Se as retinas de uma pessoa funcionam perfeitamente, não há um mundo em preto e branco. A realidade é substancialmente colorida. Diante das fotografias do século XIX e das primeiras imagens do cinema, aquilo do qual o espectador assiste é uma representação da realidade, cujas pessoas, objetos, luz, sombra e movimentos são exibidos em uma escala de cinza que parte do branco intenso ao preto mais saturado. Este talvez seja o primeiro aspecto com o qual os espectadores de Lumière se depararam logo nas primeiras exibições públicas.
As histórias dessas exibições são recheadas de lendas das quais a mais conhecida é a de que as pessoas se espantaram com o filme “A chegada de um trem na estação” (L’Arrivé d’un train à la Ciotat), como se a locomotiva viesse ao encontro delas e, apavoradas pela suspeita de que seriam atropeladas, fugiram do cinema. Mas não há relatos registrados da exibição em que tal anedota tenha de fato ocorrido. Provavelmente conscientes de que aquilo não passava de um filme, nascia ali um contrato e a invenção de um público que, aos poucos, foi acompanhando (com espanto ou não) todas as invenções próprias daquela arte incipiente.
Os primeiros personagens
Os primeiros personagens do cinema, como relatado no filme “Os Primeiros Filmes dos Irmãos Lumière” (The Lumière Brothers' First Films), de Thierry Frémaux, são da classe trabalhadora, em sua maioria mulheres.
Essas pessoas que aparecem no filme sabiam da existência da câmera e foram, possivelmente, informadas a não mirá-la diretamente. Isso denota um aspecto de performance, no sentido de que “é preciso se mostrar fazendo algo”, a “saída da fábrica”, mas sem que percebam “que estou participando desse ‘jogo”’. Nasce ali outra espécie de contrato, a de um personagem (ou persona que reconhece ser visto e assim performa) e a de um público (que vê a performance e a justifica). Se os trabalhadores não eram atores, foram os pais dos primeiros atores de cinema. E uma história estava sendo contada ali, com começo, meio e fim, organizados não numa montagem da qual D.W. Griffith seria o inventor, mas que já poderíamos chamar de “a linguagem cinematográfica”, com movimentos (não de câmera) antecessores aos famosos cortes, como o portão sendo fechado, trazendo consigo o desfecho da narrativa.
Encenação do real
“A saída da fábrica Lumière em Lyon” traz elementos configuradores de uma narrativa ficcional, extrapolando o estilo documentário. É em “O almoço do bebê” (Le rpas de bébé) que a encenação do real começa a ganhar maiores contornos.
Três personagens: o pai (Auguste Lumière), a mãe (sua esposa) e o filho do casal, no centro. Direção do irmão Louis. A câmera está imóvel e enquadra de forma bem justa as personagens. Auguste alimenta o filho com gordas colheres de papa e um biscoito. A mulher sorve o líquido de uma minúscula xícara. Uma sequência encenada, não necessariamente ensaiada, mas performada para a câmera – uma encenação do real.
“A saída da fábrica Lumière em Lyon” traz elementos configuradores de uma narrativa ficcional, extrapolando o estilo documentário. É em “O almoço do bebê” (Le rpas de bébé) que a encenação do real começa a ganhar maiores contornos.
Três personagens: o pai (Auguste Lumière), a mãe (sua esposa) e o filho do casal, no centro. Direção do irmão Louis. A câmera está imóvel e enquadra de forma bem justa as personagens. Auguste alimenta o filho com gordas colheres de papa e um biscoito. A mulher sorve o líquido de uma minúscula xícara. Uma sequência encenada, não necessariamente ensaiada, mas performada para a câmera – uma encenação do real.
O caráter documental exibe seus últimos suspiros em “O regador regado” (L’Arroseur arrosé). Nesse sentido o título é bem sugestivo. Ele tem um trocadilho, diferente dos filmes anteriores, em que os nomes sugerem apenas o que se propõe a mostrar. O “regador regado” propõe mostrar o que intitula mas como uma gag. Uma narrativa simples, enquadrada em câmera imóvel, o regador, próximo ao canto esquerdo de quem vê, está regando o jardim com uma mangueira, quando, de repente surge um rapaz e pisa na mangueira. Por um período curtíssimo de tempo, o regador se espanta com a falta de água do objeto de trabalho. Quando menos espera, o rapaz retira o pé sobre a mangueira e a água jorra forte no rosto do regador. Depois, o regador busca o rapaz pelas orelhas, castigando-o. O curioso é que o rapaz sai de cena olhando para a câmera. Claramente a performance se torna uma atuação deliberada. O real é transcendido e se torna invenção.
Novo jeito de olhar
O filme “A chegada de um trem na estação” (L’Arrivé d’un train à la Ciotat) traz um início de sequência bem interessante. Um personagem, que aparentemente puxa uma carroça, sai de quadro aos poucos. No plano de fundo, vemos a locomotiva se aproximar: o antigo sendo substituído pelo moderno. A câmera é muito bem colocada para que possamos perceber o movimento do trem. Quando o trem “atravessa a tela” e continua a se locomover, surgem diferentes luzes vindo de suas janelas e portas, e diferentes pessoas se aproximam para o embarque e o desembarque de passageiros. As portas se abrem, tudo é bastante movimentado. É uma proeza o que os irmãos Lumière fazem com a câmera estática. Eles sabiam que o grande diferencial de sua máquina era o movimento, por isso abusam dessa peculiaridade, inventando um de um jeito de olhar o real.
Este foi o presente dos irmãos à cultura, mais do que a invenção da máquina que possibilitaria tal efeito. Não apenas inventaram como souberam manuseá-la para encantar (e ao mesmo tempo criar) os espectadores, personagens, situações, narrativas, filosofias, pensamentos, ideologias, propagandas. Inventaram o documentário que, desde a sua fundação, dialoga com o ficcional e o performático.
Logo perceberam o que diretores posteriormente fariam: o jogo de cena. Se não inventaram de fato a linguagem cinematográfica, sugeriram aos que viriam. É nesse sentido que a realidade em preto e branco tornou-se muitas vezes mais real do que a do cotidiano colorido.
Olhar com uma câmera é olhar mais de uma vez e, dessa forma, inventar e reinventar o real.
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