sexta-feira, 16 de agosto de 2024

32) Viver o que deveras finge

Parte um

Plantamos memórias uns nos outros, sem ter a consciência de como isso pode afetar o HD alheio, ou mesmo sem ter a menor noção se do que dissemos ou fizemos ficarão ou não nos quadros mentais de uma pessoa. Uma frase escorregadia, um beijo atravessado que pega um canto de boca, um elogio, uma traição, uma crítica negativa, um olhar estranho, um movimento às escondidas porém visto, um “bom dia” bem educado, uma frase solta, uma piada, uma mentira, um soco na cara. Qualquer ação vinda de nossos corpos pode ser subscrita no HD de outra pessoa, e de que maneira?, a gente fica sem saber. Algumas dessas memórias implantadas serão aos poucos esquecidas — ou melhor, não terão a relevância que as façam surgir tão cedo sobre a imaginação; basicamente, não é um jingle das Lojas Lua de Mel —, mas, algumas dessas ideias, as mais marcantes, impregnam na memória de alguém como Big Big sob uma carteira de escola pública. Dizem que a memória não é exatamente um registro da realidade, mas uma interpretação da mente. É preciso entender também que a memória é o passado com os olhos do presente. Quando retornamos àquela imagem, não é como se apenas assistíssemos a um filme de novo, mas como se dirigíssimos esse filme mais uma vez, com novos equipamentos, uma nova atriz, quem sabe, um final surpreendente, uma fotografia noir... Posso entender isso de algumas maneiras, uma delas é: as memórias se modificam conforme nos recordamos delas; até porque somos uma nova pessoa a cada lembrança, assim como as lembranças se renovam a cada curso. E essas palavras são apenas reflexões que talvez não cheguem a um leitor — ou fiquem na memória de quem acabou de ler.

Parte dois

Fingir não é de todo ruim: olhe os atores da tevê, do cinema e do teatro; olha o Fernando Pessoa, que finge o que deveras sente. Finjo que os meus sonhos são figurinhas e vou colando-os num álbum de desejos, sem que esse álbum jamais se complete. Mais do que isso: nenhum desses sonhos vai se “realizar”, mas é justamente na impossibilidade que mora a graça. Fingir é só uma forma de dizer: eu crio um mundo em que sou nele exatamente o que quero ser, sendo assim, abandono pódios, picos de montanhas e vivo as ideias da minha cabeça, sem que precise chegar a algum lugar ou ter alguma coisa para que isso realmente exista e, caso exista, finjo que não é comigo. Parece estranho, mas algo me diz que vivo exatamente assim. A imaginação não apenas me alimenta, ela me move. Eu imagino, às vezes, que poderei ser um quadrinista, e aí eu vou sendo, com a tinta guache que é barata e eu posso comprar, com os papeis sulfites que amontoam pela casa, com as ideias que surgem à minha cabeça, com os desenhos feios que, pela feiúra, realizam o possível, não o ideal. O ideal é o horizonte, eu tento recordar sempre. Eu posso ser Paris ao recitar versos de Jacques Prévert? Imagino que sim, mas não apenas imagino, o faço. Recito os poemas com o pouco ou quase nada de língua francesa que tenho. E depois me dá uma vontade daquelas de fumar e tomar um café; não vou fazê-lo, mas é bom ter vontade. Tento manter uma seriedade desprentensiosa em relação aos sonhos, de modo que eu nunca deixe de fazer as coisas por conta do que acontece no mundo, como ele se movimenta, as demandas da velocidade, do dinheiro etc. Viver o que deveras finjo é o meu lema: colo mais uma figurinha no meu álbum, a penútlima. É um álbum feito apenas de penúltimas figurinhas.

Parte três ou final

Coloco Vidas Passadas (Celine Song, 2023) para rodar, numa noite em que o dia só seguiu a sua marcha e nada poderia acontecer de extraordinário — isso eu poderia afirmar categoricamente se o extraordinário não fosse o ordinário no momento certo. Dou início ao filme sem saber nada dele, a não ser a indicação dita por um par de olhos bonitos: “Você tem que assistir”. Se séries não me pegam há anos, filmes sabem chegar de mansinho e, já numa cena inicial, são capazes de me transformar em um espectador atento. A primeira cena de Vidas Passadas, como saberemos mais à frente, se passa em Nova Iorque. Três personagens que um narrador em off nos apresenta, como se ele tivesse os mesmos olhos que os nossos: olhos de quem vê pela primeira vez. Três personagens sentados num balcão de um bar, sendo dois deles de ascendência asiática, estão próximos, parecem ter certa intimidade; e outro personagem meio de lado, demonstrando que poderia não estar ali, mas, como está, permanece como pode, desajeitado. O filme corta para Seul e mostra a vida de dois adolescentes, que serão os protagonistas dessa história, e que são os mesmos dois que estão mais próximos no bar. Eles escondem uma paixão platônica, mas isso só se torna mais evidente quando a menina diz que vai embora para o Canadá; não apenas diz, vai. Depois disso, os anos passam em ciclos de 12. 12 anos depois, portanto, o menino, agora adulto, encontra a menina, agora adulta, no Facebook, e entra em contato com ela, reatando uma relação que pareceu chacoalhar mais a cabeça dele durante todos esses anos do que a dela. Ela se lembra dele, claro, foram melhores amigos, mas a lembrança que ele carrega tem algo a mais, não à toa o motor de sua busca para encontrá-la. Passam a conversar quase que diariamente de forma online e descobrem que têm vidas bem diferentes, mas tudo é amistoso e apaixonante; até que a praticidade da vida cotidiana venha transformar o “e se” em “não dá”. Quando estaria certo de que eles se reencontrariam, os contratempos os afastam. Dentro desse novo ciclo de 12 anos, a mulher, que é uma escritora, inicia uma nova relação com um também escritor, norte americano. A primeira cena do filme, entao, é esse reencontro entre os dois, mais um: os amigos da adolescência se revisitando 24 anos depois, mais o marido dela. Guardarei o desenrolar dos acontecimentos para quem vai assistir ao filme. Na Coreia, a palavra “In-Yun”, pode ser traduzida como “destino” ou “providência”. O conceito fala de como a conexão entre duas pessoas é um sinal de que esse encontro aconteceu em vidas passadas. Essa ideia fica evidente em relação aos dois amigos, mas o interessante é aplicarmos o mesmo conceito ao casamento do marido e da esposa.

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