sexta-feira, 23 de julho de 2021

26) Aulas Inesquecíveis

Algumas aulas são chatas, aborrecidas e apenas tempo perdido, enquanto outras tecem o improvável e podem mudar a vida de alguém.

À minha cabeça surgem duas aulas inesquecíveis. A primeira foi uma aula de geografia, no sexto ano do fundamental, lecionada pelo alto e esguio professor Kléber, o Klebão. Ele era um sujeito ríspido em sala, de cortadas ferozes feito atacante de vôlei verbal, quase indefensável. 

Uma vez, porém, Klebão pediu que fizéssemos um "para casa", uma redação que discorresse (lembro dessa palavra em especial) sobre a chegada dos portugas neste território ainda não chamado Brasil.

Fiz o para casa e o apresentei na aula seguinte. Depois disso nunca mais me esqueci dele, do Klebão, e já com treze anos passei a entender o que eu, Diogo, faria aqui neste mundo, e devo parte dessa descoberta ao ríspido professor de Geografia. Conto sobre esse dia em um texto que se chama Klebão, o pontapé narrativo.

A outra aula inesquecível aconteceu na graduação em Letras, lá em 2011. Uma professora, de maneira muito simples, mudou meu jeito de olhar pinturas e ler poesia. Foi a professora Myriam. Na primeira aula de teoria literária II, ela colocou sobre a parede branca um quadro do Paul Klee e posteriormente algumas estrofes do Barco Ébrio, de Rimbaud.

Primeiro ela pediu que olhássemos, durante um tempo, para o quadro de Klee. Se quiser fazer isso também, seria legal.

 
E ali nós ficamos. Olhando cada quadradinho, cada cor desse quadro, que tem um nome lindo: Som Antigo. Em seguida ela pediu que lêssemos algumas estrofes do Barco Ébrio, abaixo com tradução de Ivo Barroso.

Livre, a fumar, surgindo entre as brumas violetas,
Eu que rasguei os rúbeos céus qual muro hostil
Que ostentasse, iguaria invulgar aos bons poetas,
Os líquenes do sol e as excreções do anil;

Que ia, de lúnulas elétricas manchado,
Prancha doida, a arrastar hipocampos servis,
Quando o verão baixava a golpes de cajado
O céu ultramarino em árdegos funis.

Depois Myriam se levantou de sua cadeira e pediu que comparássemos o quadro com o poema, quais semelhanças existiam entre eles?

Daí que eu não conseguia enxergar nada que pudesse se coincidir. Até porque não entendia muito bem o que Rimbauzinho queria dizer.

Aos poucos, bem nas miudezas, a professora foi nos explicando. Primeiro a apontar a estrutura do quadro: os quadrados menores dentro de quadrados maiores, e fazendo uma ligação direta com os conjuntos de quatro versos que seguiam uma métrica dentro das estrofes.

Depois apontou aqueles quadradinhos que se repetiam em determinados pontos, e fez uma ligação com as rimas e as sílabas poéticas do poema*.

Aí a professora voltava para o quadro de Klee e apontava nele as diferentes tonalidades, e ia para o poema e mostrava as cores em excesso: "brumas violetas, rúbeos céus, excreções do anil". Além de todas as imagens que também eram muito coloridas: "Quando o verão baixava a golpes de cajado", enfim, uma chuva de sentidos, imagens e sons (esse poema dá água na boca).

Essa aula, no fundo bem simples, fez a minha cabeça explodir e dar um salto a mais. Fez eu perder o preconceito com poemas rimados e de séculos que não eram o XX, fez eu descobrir vários outros universos, desatarraxar parafusos mentais.

Depois dessa aula comecei a ler poesia bem devagar, passando por todas as "cores" possíveis de um poema e, por extensão, as cores do mundo.


*Resumindo, sílabas poéticas são as fortes e as fracas: em "QUAN-do-o veRÃO", as tônicas são fortes, e as fracas geralmente se ligam a outras fracas, então você conta "do" + "o" como uma sílaba somente, e se o verso terminar em sílaba fraca, você não a conta. Dessa forma Ivo traduziu os poemas em dodecassílabos, versos com doze sílabas poéticas. Posso estar falando errado, qualquer coisa vocês me corrijam. 

segunda-feira, 21 de junho de 2021

25) Nação Zumbi e A Ficção Científica

Sempre gostei de assistir a filmes de ficção científica desde criança, mas só comecei a ler FC depois dos 18 anos, e isso eu devo à Nação Zumbi, que sempre flertou com a literatura especulativa em seus discos. A primeira vez que escutei e vi a banda foi pela televisão no programa Bem Brasil. Curiosamente eles estavam divulgando o então novo disco “Futura”, de 2005. Comecei atraído pelas percussões da banda e depois fui atrás da discografia, foi assim que entendi que aquela tinha sido a banda de Chico Science (olha o codinome da figura). Comprei os cds que existiam na época e logo me atraíram as discussões filosófico-científicas que estavam presentes nas letras, desde os tempos em que os jornalistas chamavam aquele movimento, em Recife, de Mangue Beat. Depois de ouvir o primeiro disco, o segundo e um disco de homenagens a Chico, gravado depois de sua morte, caiu em minhas mãos o Rádio S.A.M.B.A, ou Serviço Ambulante de Afrociberdelia, em que os integrantes assinavam as composições com seus pseudônimos: Jackson Bandeiro e Pixel 3000, entre outros. Esses temas futuristas misturados à brasilidade me fizeram ainda mais fã da banda, e o “Futura”, aquele que apresentaram na tevê, permanece como o meu disco preferido. 

As letras de Dü Peixe continuam a falar de coisas que gosto e mexem com a minha cabeça, além de seu jeito único de cantar e criar melodias muito simples. Sem contar que consegui, em 2006, ir a um show aqui em Beagá, o primeiro deles, e foi uma das melhores experiências da minha vida. Pois bem, a partir daí comecei a ler ficção científica, tirando todo o preconceito que eu tinha com o gênero na literatura - era óbvio que sentia isso porque não conhecia a literatura de ficção científica, então eu só imaginava o que poderia ser, baseado nas minhas experiências vendo filmes que, na maioria das vezes, diluíam toda a carga filosófica, sociológica e antropológica da FC em cenas de ação e efeitos especiais.



quinta-feira, 10 de junho de 2021

24) A Morte e o Meteoro

Depois de ir ao lançamento do livro aqui em Beagá, em 2019, e enfrentar a leitura sem muito entusiasmo da primeira vez, acabei de ler A Morte e o Meteoro, de Joca Reiners Terron, semana passada, em pequenas rajadas, assim como o escritor diz escrever. O livro conta a história de Boaventura, um indigenista aventureiro e sua missão para exilar os últimos cinquenta indígenas do Brasil, os Kaajapukugi, ameaçados de extinção depois da destruição da Amazônia. 

Eles serão transferidos ao estado de Oaxaca, no México. O livro é dividido em quatro capítulos, com o tempo cronológico tendo a consistência de uma gosma, em que passado e futuro se mesclam em um presente atemporal (louco, não?), característica que encontra eco no pensamento dos Kaajapukugi sobre a existência e a origem do mundo. A narração do livro fica por conta do substituto de Boaventura, já que este último morreu de forma misteriosa no decorrer da missão. Conforme a história é contada, somos envolvidos em uma trama que revela tensões, motivações e conspirações nada agradáveis em relação ao exílio dos Kaajapukugi. Indico, até porque aqui só escrevo sobre o que gosto. 

sexta-feira, 14 de maio de 2021

23) O Primeiro Sebo do Brasil


Eis que você, tão distraído(a) como os cachorrinhos diante da televisão suculenta, cai aqui. E descobre, meio à toa, qual foi a primeira livraria de livros usados do Brasil. Foi a casa do Livro Azul, logo ali na rua do Ouvidor, número 139, no Rio de Janeiro, em 1828. Quem inventou a extravagância e tomava conta da lojinha era o francês Albin Jourdan. Esse Albin Jourdan - ou cá entre nós, Jordinha - sacando de qual é que era o movimento da rua - tudo o olho da cara -, começou a fazer o contrário, a vender tudo baratinho. Não só. Jordinha trocava e alugava livro pra geral. E foi aí que o negócio fez como dinamite: bombou! O que se conta é que Jordinha, depois de velhinho, acabou ficando cego e quase surdo. Além de usar uma buzina para ouvir melhor, contratou dois ajudantes - que não ajudavam muito. Jordinha, então, sempre se levanta, colocava a buzina no ouvido e atendia o pessoal. E encontrava os livros solicitados tão facilmente como se a livraria fosse apenas mais um cômodo de seu cérebro. A Casa do Livro Azul - como é de praxe das livrarias - melhorou o mundo até 1850.

terça-feira, 11 de maio de 2021

22) Ter ideia ou não ter ideia, eis a questão

Melitta Bentz, a inventora do filtro de café

Os verbos "descobrir" e "inventar" têm a mesma raíz latina: inventio, “achado", "descoberta".

Descobrir é então inventar e inventar é então descobrir.

Segundo alguns, toda criação parte de uma ideia. Será?

É verdade que a criação pode ser iluminada por uma fonte de luz direta, mas costuma curtir mais a natureza difusa.

A ideia da ideia de ter ideia prolifera como formigas em açúcar abandonado, principalmente em manuais de arte ou cursos EAD com enormes descontos para os 50 primeiros inscritos. 

Durante muitos anos (nem tantos, na real) acreditei que só escreveria um texto, faria uma música ou desenharia algo se tivesse antes uma ideia; de preferência das boas, daquelas que mudam o mundo, nosso jeito de ser, nossa produção, em que teremos finalmente encontrado a mina de ouro da criatividade, a manifestação viva da pedra filosofal, ou o Santo Graal da invenção.

A grande ideia existe, mas você não precisa dela. A pequena ideia já serve. Melhor do que isso, não ter ideia nenhuma serve mais ainda.

Acontece de ficarmos à espera de um despertar, uma iluminação dos gurus. Às vezes, ela vem. É luminosa, cheia de vida. A mente é encoberta por uma bolha de realidade em que tudo então poderá ser resolvido. Você faz planos, estrutura mentalmente aquela primeira intenção, pensa no investimento (de grana e energia) que terá de fazer, nas pessoas envolvidas, no tempo para a conclusão; pensa no resultado, em pessoas recebendo aquele tesouro, nos trabalhos posteriores, nas entrevistas em programas de tevê e internet, na lavada de cara daquele conhecido que nunca acreditou em você. Enfim, uma tempestade cerebral de tirar não só o cavalinho da chuva, mas o sedan prateado 2.0 e a barraquinha de cachorro-quente.

Até que você desiste de tudo ainda no sofá, porque a ideia cresceu demais, e você... é só alguém sentado no sofá.

Talvez, antes de pensar em como tirar uma foto, apenas ligue a câmera e tire uma foto. Talvez, antes de pensar naquele texto a la Hilda Hilst, comece a escrever qualquer coisa no guardanapo do bar, no papel sulfite ralinho e cheio de pautas. Talvez, antes de pensar naquele curta que vai mudar a cara dos festivais de cinema nos próximos vinte anos, desenhe sem ter a menor ideia do que está fazendo, apenas uma linha depois da outra. Tire a coberta do pensamento: descubra.

Quem sabe essa primeira foto não te dê uma partida, um trajeto, ou melhor, uma chegada: aquela fotografia já pronta, sem antes ter imaginado a sua existência. Quem sabe esse texto sem pé nem cabeça crie um tronco, que dele crescem membros, que surgem olhos, que gera um personagem, um história, um mundo? Quem sabe esse desenho não se desdobre em uma cena, um diálogo, ou apenas um desenho mesmo, e só. Tá pronto. 

Uma vez, o pintor Edgar Degas disse ao poeta Mallarmé que gostaria de escrever poesias, pois ele tinha muitas ideias para poemas. E foi aí que Mallarmé respondeu mais ou menos assim: meu amigo Edgar, puxa essa cadeira aí, senta aqui um pouquinho. Escuta só. Poemas não são feitos de ideias, mas de palavras.

segunda-feira, 26 de abril de 2021

21) O Chute Final

A esfera alva sobre o círculo branco. Os pés do italiano Roberto Baggio procuram se afastar da bola. Baggio suspende a cabeça para encarar o problema e descansa as mãos ao redor da barriga. Respira. Ante seus olhos, o goleiro, um tal de Taffarel.

Roberto Baggio quer atravessar o recém descoberto pegador de pênaltis — aquele jogador irregular do Reggiana, time modesto do mesmo país onde Baggio é sinônimo de ídolo. 

Já o menino, com seus 7 anos de idade, está sentado no chão de ardósia da sala de casa. Acompanha pela tevê de '14 e bombril na antena, junto dos irmãos e pais, a famosa disputa de pênaltis entre Brasil e Itália. É, claro, a final da Copa do Mundo de 1994, realizada no Rose Bowl, nos EUA.

O menino é morador da emergente cidade de Divinópolis, interior de Minas Gerais, no Brasil. Ele nada mais ama do que o futebol, e seu coração confirma o amor quando seus olhos nem piscam diante da tela chapiscada. Dali em diante o menino se tornará um fanático pela pelota. Fará campeonatos entre seus botões, escalará o desconhecido Ponte Preta de cor e seus aniversários terão balões coloridos como as cores do seu time do coração. 

Baggio precisa colocar a bola em um lugar entre o goleiro e os postes de metal. Um lugar que faça as redes balançarem assim como os torcedores do seu time. Um lugar que não transforme Taffarel em heroi — o mesmo goleiro insolente que já agarrou um pênalti mal batido de Massaro minutos antes. Roberto Baggio não pensa no menino. Por que o então maior jogador do mundo, ganhador da bola de Ouro do ano anterior, pensaria? Mas sabe que existem milhões à espera de seu derradeiro chute, seja em Divinópolis, na cidade de Roma ou nas cadeiras numeradas do estádio americano, o mesmo coliseu em que ele, Baggio, se prepara para se tornar ídolo ou — como uma moeda de duas caras lançadas ao ar pelo juiz — o vilão. 

O menino rói as unhas de ansiedade. As unhas de Baggio estão intactas; ele apenas se concentra no objetivo, aquilo que os ingleses não à toa deram o nome de Goal.

Como um ser onisciente, vindo do alto-falante da CCE, uma voz meio aveludada e rouca narra com emoção a seguinte frase: "...vai partir... ...VAI QUE É SUA, TAFFAREEEL! PARTIU! BATEU!..."

Segundos antes, Baggio corre até a bola. Taffarel se adianta, dando um passo e pulando para frente. Baggio chuta. Taffarel cai. A bola sobrevoa acima do travessão. A narração completa: "...CABÔÔÔ! CABÔÔÔ! ACABÔÔÔÔÔ! É TETRAAA! É TETRAAA! O BRASIIIIIIL É TETRA CAMPEÃÃO MUNDIAAAL DE FUTEBOOOL! O BRASIIIIL, VIIINTE QUATRO ANOS DEPOOOIS, É TETRA CAMPEÃO MUNDIAAAL DE FUTEBOOL!...".

Roberto Baggio não chegou a ouvir aquela frase. Depois do chute final, apenas deixou o queixo cair sobre o peito, como um Dadá Maravilha às avessas, sem encontrar a bola que justificasse o gesto. Não ouviu aquela frase gorda e emotiva que, para ele, seria um tremendo fastio. O que seus ouvidos desejaram? Bloquear, somente bloquear, como uma barreira feita por Pagliuca, a festa de arromba dos jogadores amarelos.

Porém, mais impactante do que a frase esfomeada do narrador brasileiro teria sido, ou o alto-falante da CCE quase a estourar, ou os abraços e as inúmeras reprises daquele chute em todos os telões do mundo; mais impactante do que o menino, agora homem, e com os olhos marejados, a escrever as lembranças daquele dia, foi e ainda é... o zumbido. O zumbido ainda atormenta Roberto Baggio. E já são quase trinta anos, agudo e penetrante, o zumbido em uniforme de insônia, vestido de entrevista, documentários, lembranças escabrosas.

Já o menino, mesmo com os problemas da vida adulta, nenhum zumbido capta. Seus pensamentos tão somente repetem: "É TETRA!". 

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

20) Caminhar não leva a lugar nenhum

É justamente a infinitude que nos interessa ao caminhar. Não ter um destino: alguém levantando uma placa de papelão com o nosso nome rabiscado em meio a um aeroporto infestado de gente. Não ter uma chegada: um pódio dividido em três categorias de vencedores. Não ter um porto: um solo de areia, palmeiras e vendedores de coco que nos atraquem. Caminhar – desculpe a indecência – não leva a lugar nenhum.

Caminhar elide sujeito e objeto. (Talvez algum poeta tenha dito algo parecido). Caminhar é (atente ao tempo verbal) presença. Pelos menos o caminhar de que falo. Aquele sem dívidas a serem quitadas com a barriguinha. Sem pódio de chegada ou beijo de namorada. (Sim, um letrista falou). Caminhar por caminhar, para se reconhecer.

Comecei a manifestar esse caminhar quando ainda o encarava como uma maneira de economizar o dinheiro da passagem de ônibus de ida à escola para comprar cds do Pearl Jam; banda que me fascinava na adolescência e que fazia de seus discos obras-primas gráficas. Ia do Caiçara (onde ficava a escola) até o Serrano (onde eu morava) apenas guiado pelos meus pés; e, sim, tinha um destino. Até dois. Chegar no Serrano vivo a cada dia. Depois de uma semana, uma semana e meia, ter o dinheiro para comprar o cd.

Depois esse caminhar começou a surgir em momentos em que eu precisava conversar com um amigo. Aí eu convidava alguém, nós comprávamos um Chapinha e dá-lhe pernas até a Lagoa da Pampulha. Apesar de parar na Lagoa, não era em si um destino, um objetivo. O objetivo era a conversa. Tanto a caminhada como a lagoa eram trajetos.

Até que (já naquela época) as pessoas não tinham mais tempo e nem sempre havia um amigo, e aí o trajeto se transformava em companhia. E o destino, o objetivo já não tinha importância. A importância morava nos pés em movimento. Nos olhos a verem as coisas. Nas narinas a sentirem o cheiro enquanto ouvidos percebiam movimentos, sons próximos, sons distantes.

Tanto feliz como triste, caminhava. Uma vez vi um documentário na tevê aberta sobre andarilhos. Como é de costume desses programas, metade de tela era de entrevistas com os andarilhos, metade com "especialistas". E os especialistas diziam que quem tinha como objetivo na vida o andar, era alguém sem rumo. De início pensei que eu não tinha rumo nada vida e cheguei a comentar com uma amiga essa descoberta. Por fim tive certeza de que não tinha rumo na vida... e tudo bem.

O "tudo bem" surgiu com mais força depois de descobrir a meditação andando. Para os budistas da escola zen (ou chan, se for chinesa) o caminhar sem meta é uma das práticas meditativas. Eles praticam em uma sala, e dão o nome de kinhin, mas também praticam em ambientes externos. E nos últimos dias decidi praticá-la novamente. Para isso tirei da estante um livro do Thich Nhat Hanh, Meditação Andando. Desse monge, na Netflix, até um mês atrás tinha um documentário sobre seu mosteiro, o Plum Village, na França. É uma pena que tiraram; pelo menos consegui assistir três vezes.

A meditação andando contempla esse aspecto de não ter meta enquanto se caminha. Não querer destino. Essa nossa obsessão por resultados traz também muitas frustrações. Porque, simplesmente, não podemos ter tudo o que desejamos. Quase sempre não chegaremos ao pódio. O real então se mostra não é nem no começo, nem no fim, mas no meio da... (eu sei, eu sei que você já conhece essa frase, deixa eu só terminar) ...travessia.

domingo, 10 de janeiro de 2021

19) Três Corações

Prisão de Alcatraz

Há coração escondido pelas costelas como se estas fossem grades de uma prisão de segurança máxima.

Há coração menos preocupado, que sai pelo buraco da fechadura enquanto a chave da porta se perdeu nos bolsos daquele short no fundo do cesto.

Há coração que deixa a porta escancarada e se entrega entusiasmado pelo mundo como se visitasse diariamente as pontes do rio Sena.

O primeiro só sai uma horinha por dia, para tomar banho de sol. Se segura ao máximo para não falar o que pensa, afinal pode ser retalhado. E, por esconder os desejos na garganta, está sempre com azia, com dores no estômago, tristezas sem porquês e olhando para os próprios defeitos como se fossem muros gigantes protegidos por arames farpados. 

O segundo bate forte quando o narrador grita gol, mas não tão forte que vá fazer o coração vizinho bater o interfone ou aquele gancho para a polícia. Derrama seu amor por pessoas próximas, os amigos e as amigas, namorados e namoradas; pelos pais ainda derrama amor em conta-gotas, em datas comemorativas, e acredita que a queimação do estômago seja herdeira do excesso de pernil comido no natal.

O terceiro bate forte tanto na arquibancada de um campeonato de escola quanto na primeira fila de um show da Ivete. Tem sempre uma história para contar na ceia e nunca abaixa os olhos para ver se está escapando pelas pernas. Não reclama de dor no estômago, porque nunca teve, e se pergunta "o que é estomazil?", deixando todos à mesa com a goela em chamas, desacreditados que ainda existam seres que não deram nenhuma bolinha num comprimido desses.

Tem coração que consegue dar uma voltinha no quarteirão, mas de tornozeleira. Vai até a esquina mais próxima, olha para todos os cantos, assustado, com medo de que o descubram fugindo, volta rápido para dentro de si, passa a noite inteira com insônia, dorme duas horinhas e acorda amedrontado com a autocobrança enroscada na própria canela.

Tem coração que dorme uma noite de sono mais ou menos tranquila, e só começa a bater forte quando tem sonhos com os pais em diversas situações, tanto ruins como boas. Acorda com a ajuda do despertador entre 9 e 10 da manhã, ainda sonolento, e chega quase sempre atrasado ao trabalho, com as desculpas querendo sair pela boca, mas controlada no centro da garganta.

Tem coração que dorme só de encostar a orelha no travesseiro. Acorda às oito horas, longe de qualquer ressaca moral, pronto para ir ao psicólogo uma única e última vez, só por curiosidade, já que pensou seguir a profissão de psicanalista – afinal gosta de gente.