terça-feira, 19 de dezembro de 2017

13) Júpiter Maçã ou A Arte do Respeito Próprio

Estava eu assistindo a um programa pelo Youtube, um programa já extinto, chamado Musikaos, exibido pela TV Cultura em passado recente, apresentado por Gastão Moreira, jornalista cultural de quem eu tenho grande admiração.

Esse moço é o Júpiter.
Gastão, nos dias atuais, toca um canal no Youtube chamado Kazagastão, o KZG. Foi em uma das playlists do canal  ou nos vídeos que o youtube relaciona, não lembro muito bem  que descobri um arquivo de vídeo do Musikaos em que Júpiter Maçã, ou na fase artística na qual foi gravado o vídeo, Jupiter Apple, apresentou-se com duas músicas e deu uma breve entrevista. E foi nas poucas palavras ditas pelo músico, e não nas cantadas, que me liguei, a ponto de pensar sobre aquilo a madrugada inteira, inclusive depois de acordar.

Quer dizer, algo que me colocou a escrever, sentar a bunda e escrever sobre. O lance foi simples, entre a primeira música e a última, pois só tocaram duas, Gastão partiu para a entrevista munido de pequenas perguntas (em sentido quantitativo) e obteve várias grandes respostas (em sentido qualitativo). Em uma delas, que foi mais ou menos assim — Júpiter, você toca vários instrumentos, domina o contrabaixo, gravou um disco inteiro sozinho, você teve professores ou sempre foi um autodidata?

Este é o Gastão. Não deixe de assistir ao canal Kazagastão, no Youtube.
Eu sempre soube de Júpiter como um autodidata, fiquei esperando a sua resposta, seria sucinta, "Sim, sou um autodidata", mas ele respondeu outra coisa, com aquele sotaque gringo e gaúcho — Não, tive professores. John Lennon, Harrison, Syd Barret.

A resposta arrancou sorriso meu e do entrevistador em planos temporais distintos. Para selar com cera vermelha, Gastão levantou:
— Você é um cara que teve muitas fases, cantou blues, folk, rock and roll, cantou em português, agora em inglês, você leva a sério essas diferentes fases, não é?
Júpiter arrematou:
— Se eu levo a sério as minhas fases? Sim, eu me respeito.
Discaço.
E é este o ponto. Respeito próprio. Essa coisa do, Sim, eu me respeito, me fez refletir tanto sobre o respeito próprio, que... Putz. Algumas poucas e insistentes perguntas povoaram minha cabeça: quando você deixou de fazer algo que queria por algum motivo, por exemplo, por medo? Por julgar não ter tempo. Quantos poemas bons você deixou de criar ou letras de música porque não teve coragem de dizer o que pensava? Por que se preocupou com quem leria, com a cena musical da sua cidade? Quantos livros engavetados. Quantas vezes foi omisso a ponto de não dizer aquilo que pensa do mundo, dos parentes, dos amigos, da televisão, dos seus amores? Tudo por desrespeito próprio, eu aposto.

A arte do respeito próprio exige confiança. Desafio, portanto, dos mais difíceis. Não ceder. O simples gostar do que você gosta, relacionar-se com quem você gosta. Estar próximo e trabalhar para aquilo que você ama. Errar. Considerar suas motivações, seus pensamentos, seus desejos. Aqueles mais absurdos. Suas fases, a infância, a adolescência. A raiva, o ódio, o amor, a carência, o ciúme. A paranoia.

Júpiter manda joia.
Escrevo isto daqui enquanto me vem toda a discografia do Júpiter. Uma obra de liberdade, de ambição. "Sim, eu me respeito". Gastão anuncia a banda pela última vez naquele dia, Júpiter toca a última música, então do trabalho posterior, o Hisscivilization, e deixa um cara em Belo Horizonte sem dormir.

sábado, 2 de dezembro de 2017

12) A Fila ou Condição Diária Para Dias Piores

Saídos do bairro construído pela Empresa, os funcionários vêm de longe, adentram a recepção em fila indiana. Uma boneca inflável os recebe, com a frase eletrônica: boa-vinda, funcionários! Então respondem em uníssono: boa-vinda, funcionários! Vocês foram contratados, podem, por favor, se dirigir à sala dois. Podem, por favor, se dirigir à sala dois, em acordo respondem. Na sala do cadastro, encontram um robô de lata. Em uma frase curta com um verbo no meio, o robô cadastra e anota características de todos os funcionários, esclarece deveres e direitos perante a Empresa. O robô termina seu discurso com o dedo direcionado à terceira e última sala.

Ainda em fila indiana, os funcionários penetram a sala do Chefe. Sem qualquer menção de boas vindas, fala eletrônica ou cadastros, o Chefe pisoteia os funcionários da Empresa. A porta dos fundos é aberta. Sem que voltem para o bairro de mãos abanando, carregam bolsas azuis contendo quilos de desaforo e pequenos brindes de utilidade cotidiana: escovas dentárias transmissoras de cáries e tártaros; sabonetes brotadores de acnes e espinhas; pentes que passam caspas e piolhos.

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

11) Caronas da UFMG ou Elivelton*, O Cara de Óculos do Carro Vermelho

Ele apareceu de carro vermelho. Coisa ainda mais rara: em duas sinalizadas minhas, lá estava o carro vermelho encostando. Antes de eu abaixar a cabeça e falar para onde iria, cumprimentei o cara com um beleza. Ele falou, entra aí. Pra onde cê vai, me perguntou. Pra praça de serviços. Ok.

É, esse carro é verde. Nada a ver.
Uma garota aprontava-se para entrar no carro conosco, quando ele disse que não cabia. O banco da frente é difícil de descer, só cabe um, infelizmente, emendou.

Pelo caminho de pedras entre a Faculdade de Educação Física e Terapia Ocupacional, em que os carros mal passam e se ouve mal quem fala enquanto guia o volante, foi que o Elivelton passou os pneus e também a contar a história de uma outra carona que ele havia dado. 

— Então, esses dias, coisa de uma semana atrás, eu tava subindo aqui por esse caminho e vi um cara correndo apressado, muita pressa, meio gordinho assim, sabe? Parei pra perguntar... ou, cê quer uma carona? Não é que o cara me olhou e deve ter pensado, putz, esse cara adivinhou!

Contando alegre como um lagarto ao sol. Eu ouvia sua história pelos cotovelos. Ele prosseguia através dos óculos.

Tenho a impressão que este é mais verde ainda.
— Pra onde cê tá indo, o cara me perguntou, tô saindo pela Carlos Luz. O cara disse que tava atrasado pro trabalho, que trabalhava na Gontijo. Falei pra ele que ia passar por lá. Cê tá brincando? Sério. Nossa, moço, cê pode me deixar lá? Claro. Não é que deixei o cara lá? Na porta do trabalho dele?

Deixou. E pelo visto como se tivesse nascido para tal.

— Quer dizer, o cara tava atrasado, não sei, tinha perdido um ônibus, o segundo ônibus tinha estragado, e ia subir essa avenidona toda aqui, correndo. Apareci na hora certa. No lugar certo. Acabou chegando antes do previsto e do imprevisto. Muito bom, muito bom.

E riu.

Assim que ele apertou o ponto final da história com esse duplo "muito bom", as pedras deram o tchau, e agora eu poderia ouvir de forma clara outra contação.

Me divertia com o Elivelton, ele, porém, parecia não gostar do asfalto, não para contar histórias.

Do bandejão até a praça de serviços o silêncio instalou-se no carro como se os vidros não estivessem nas portas mas entre nós. Paramos na praça. Agradeci. Ele deu um tchau agradável.

Outra história não viria. A que ele me contou correspondia à história-síntese, que talvez conte a todos que junto dele atravesse o caminho das pedras.

*nome fictício

terça-feira, 24 de outubro de 2017

10) Jota Jota e a Bicicleta ou Um Amigo Entre Tantos Colegas

Fuçando os meus parafusos e perguntando aos funcionários que trabalham na minha cabeça (sei que vocês os conhecem, um misto de arquivistas desorganizados e biógrafos auto-ficcionais), fiquei a par de saber o que é uma bicicleta.

"Senhor Diogo". Os meus funcionários me chamam assim, uma herança da hierarquia inútil. "Uma bicicleta é um veículo de duas rodas, por isso tem esse 'Bi'". Depois dessa pontual explicação, eu entendi, e não carregava mais dúvidas na minha garupa mental.

O que os meus funcionários não sabiam dizer é, quem ou que é Jota Jota? Para esse entendimento deixei-os de folga curtindo uma praia no sul da Bahia.

Conheci Jota Jota, ainda sob a alcunha de Geraldão, em meados de 2005, não sei.

Eu tinha uma banda, Playmobils, ele tinha outra, 4annex. Num dia louco aí, a gente dividiu o palco de um comício de um então vereador cego daqui de Beagá.

O 4annex era uma banda de hardpunkcore, sei lá, essas conjugações aí que o pessoal inventa, que tocava canções autorais em inglês. Tocar canção autoral era uma puta responsa. Eu não conhecia três ou quatro bandas naquela época, com uma faixa etária dos músicos entre 15 e 17 anos, que fazia isso. Certo, mas o que deixava o pessoal de cabelo com gel, era o tal do baterista. O baterista vocês já sabem, o baterista deles era, óbvio, o John Bonham. 

Mentira, Geraldão é o seu nome.

O Geraldão tocava como toca alguém que é Keith Moon e Dave Grohl ao mesmo tempo, mas com precisão. A precisão era incrível. Depois de um tum-tá-tum-tá veloz, ele conseguia, com a tranquilidade de um gorila, cair no mais suave relaxamento sonoro. Aliás, o que eu me lembro do 4annex é essa justaposição entre o frenético e o calmo, muito pelas baquetas do Geraldão.

O tempo passou, as crianças cresceram, o vereador cego virou deputado, mas não recuperou a vista. Fui trombar com o Geraldão coisa de 7 anos ou mais depois. E desse encontro eu me lembro. Ele sentou na batera do Castelinho, a Pretinha (antiga vocalista do 4annex) sentou num banquinho com o violão nas mãos, e eu, de baixo em riste, suspendi os ouvidos, pronto, daí sapecamos um som.

Depois eu fui ter uma banda com a Pretinha, e o Geraldão foi ter uma banda com o Bil (que tocava comigo nos Playmobils e que também faria parte da banda com a Pretinha).

O segundo encontro antológico diz respeito a um macarrão com camarão e uma garrafa de Black Label. 

Meu primeiro contato com o uísque foi bêbado, vomitável, mas bastante agradável. Descobri uma bebida que me deixava com o cérebro aceso. Ótima pra refrescar as piadas inteligentes. Dali pra frente, junto da Paulinha, eu teria pessoas com quem trocar uma ideia fina e amaciar uns gatos.

As pessoas também chamavam o Geraldão, vulgo Tiago, de J.J., no inglês. Eu abrasileirei pra Jota Jota, desde então é assim.

Agora a bicicleta e o Jota Jota se unem, pois o último me presenteou algumas vezes nesta vida curta que chega aos trinta anos. Entre camisas, bermudas, colagens, baralhos, videogames e chorume pra fazer planta crescer, ele me veio dessa vez com uma bicicleta: toma, Aloni, é sua.

Descobri que o pneu dianteiro, visivelmente furado, enganou o meu modo de ver as coisas, pois furado ele não estava. Demorou pra encher de tão vazio, mas serviu como cheio quando precisei ir até a Igrejinha dar uma volta hoje à noite.

Fui cauteloso, meio pelas beiradas como o pedal esquerdo que está pela metade.

Durante a pedalada saquei que se corre realmente daqui da república onde moro pra lá, não o contrário, já que esse é o sentido do vento, na volta eu o senti contra mim, e senti sozinho pois ninguém apareceu pela minha traseira.

Volto a pedalar todas as noites, esse álibi, substituto também saudável de minhas caminhadas a esmo por Beagá. Obrigado, Jota Jota, o presente com dez dias de antecedência e ainda na pós adolescência.

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Trabalho da Mãe ou Piscina de Bolinhas

- Mãe, você tem que mudar de trabalho...
- Por quê?
- Mãe, a senhora é recepcionista de uma academia de musculação.
- E o que tem?
- O que tem, o que tem, uai...
- O que tem?
- A senhora tem que trabalhar onde eu trabalho.
- E por quê?
- Lá que é bom, mãe. Lá tem piscina de bolinhas.

- Eu não gosto dessas coisas, não tenho mais idade.
- Mãe, você não tá entendendo. Pode jogar videogame no intervalo.
- Ah, pode?
- Pode.
- Vou denunciar.
- Denunciar o quê, mãe?
- Denunciar essa empresa.
- ?
- Isso é trabalho infantil, menino!

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

9) Biscoito ou Bolacha ou A Quarta Guerra Mundial

1. Passei a receber jornais futuristas em 2009, quando visitei o ano de 2037 pela primeira vez.

2. E os jornais sobreviveram ao tempo?

3. Sim. São um pouco diferentes dos atuais. Não há quem os escreva. Eles apenas registram os passos de todos e todas as coisas.

4. Estou lendo um pós-apocalíptico que mostra como se iniciou a Guerra Mundial.
5. Não muito diferente de todas as outras guerras, a quarta se deu por uma trivial disputa ideológica. 

6. Qual o termo correto de um suposto alimento: "Biscoito" ou "Bolacha"?

7. Quem está duvidando da minha visita ao futuro (não da Guerra, já que é óbvio que guerras sempre existirão) pode conferir vindo aqui em casa.

8. Rua Hélia Ricaldoni de Freitas, 1040, Casa 5. Serrano. BH. MG. Brasil. Terra. Via Láctea.

9. A última função da máquina de lavar, depois da centrifugação, é a de Viagem no Tempo.

10. Só é preciso bastante água, pouquíssima roupa e um amaciante pra deixar tudo mais confortável.

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

8) 8101 ou Uma Gota Fora do Oceano

Ela sacou da mochila um livro e perguntou se eu já tinha lido aquele exemplar que a sua mão agora mordia.

- Esse eu não li, mas li um outro dele. O nome é “Um rio chamado tempo e uma casa chamada terra”.
- É a primeira vez que o leio. Eu curto. Ele brinca com as palavras.

Me falou isso como se tivesse descoberto a América. Estou cansado de autores que “brincam” com as palavras. Brincam tanto que esquecem de dizer algo. Literatura não é playground.

Omiti minha opinião, apenas emendei que preferia o Guimarães Rosa. 

Ela, indo para o Recife fazer mestrado. Eu, olhando mais para a sua boca do que seus olhos, quando dos lábios ouço um...

- Você é uma pessoa séria, Leandro.
- Eu?
- É. Você se considera uma pessoa séria?
- Acho que não.
- Você aceita qualquer tipo de brincadeira?
- Aceito.

Não respondi assim, rápido, como você leu. Fiquei pensando. O que seria uma pessoa séria? Eu sabia dizer até o momento dela me perguntar.

Depois me disse que ela, sim, não aceitava qualquer tipo de brincadeira, era a tal séria e por isso “sou desse jeito”. E sorriu.

De que jeito? Com aqueles óculos engraçados que mal cabiam nos olhos? Eu nunca tinha a visto como uma pessoa séria. Até porque eu não sabia o que era a tal seriedade.

“Sou desse jeito”, pediu para que lhe enviasse e-mails, desceu do ônibus e foi para o Recife.

Assim que eu chegasse ao trabalho - pois era pra lá que estava indo, não para Pernambuco -, procuraria no dicionário virtual a maldita palavra "sério".

Pessoa séria é para adultos. Eu ainda conservo aquela velha história de não confiar em ninguém com mais de trinta anos. A questão é que eu já tenho trinta anos. E dentro de mim já excluo os jovens como parâmetro de confiança. Tenho todos os requisitos para comprar um relógio e manter o cabelo aparado. Eu começo a me excluir, então. Tudo para me integrar.


É aquela velha história – acho que do zen-budismo -, uma gota fora do oceano é apenas uma gota. Uma gota no oceano... é oceano.   


segunda-feira, 21 de agosto de 2017

7) Tobias ou O Vira-lata Que Sonhou Conosco

Encontramos o cachorro no gramado entre o CAD e a Letras. Abanou o rabo (daquele jeito de dizer felicidade) e pulou em nós. Alguém no fim da rua gritou "Tobias!". Não era com o cachorro, mas serviu como nome pro animal. Levamos o Tobias à casa da Clarissa. Foi nos acompanhando, tranquilo, até o Jaraguá, sussa como uma nave, mas nunca me esqueci de que ele era apenas um cachorro. Em casa, demos um rango, separamos água e tapete para ele dormir. Preferiu o sofá. Achamos sensato. Dormiu cada um no seu canto. Tobias no segundo andar, nós no primeiro
(Um cachorro parecido com o Tobias que encontrei na Internet)
Noite boa, sem latidos ou choros, tanto de cachorros como de humanos. Acordamos cedo só pra ver se o Tobias estava bem. Estava. E também ficamos bem depois de saber que Tobias tinha sonhado conosco. No sonho, todos voavam. Voltei para a minha casa. Mais tarde soube que Clarissa, depois de um banho no Tobias e uma catação de pulgas, foi com ele até a faculdade se despedir. Observou o vira-lata cor de paçoca atravessar a Antônio Carlos. Pensou em chamá-lo de volta, adotá-lo, levá-lo pra fazenda dos pais, ficar mais um dia em sua companhia, no entanto, lembrou-se do sonho que ele teve conosco, o voo, a liberdade, e continuou a observá-lo atravessar o asfalto e se reunir contente com suas verdadeiras companhias de quatro patas. 

domingo, 20 de agosto de 2017

6) MC Livinho e a Máfia Italiana

- Tem jeito de você cortar o meu cabelo igual ao do MC Livinho?
- Tem.
 Cabelo cortado. Olho para o espelho e nada do meu cabelo se parecer com o cabelo do MC Livinho.
- Não ficou parecido com o cabelo do MC Livinho.
- É porque o MC Livinho é o MC Livinho, né?
Paguei por mais essa frustração. Aquela frustração que é igual a de vestir um paletó na espera de se parecer com um gangster dos filmes de máfia italiana, e ao se olhar no espelho, amigo, você só precisa de uma bíblia nas mãos para ser um pastor evangélico.

sábado, 19 de agosto de 2017

5) Vodka ou Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças

Vez ou outra alguém vem me lembrar de algo que se recorda de eu ter dito, ou de um presente que ganhou de mim. Na maioria das vezes, me parece, cada um se lembra daquilo que mais lhe convém, claro, ou que foi mais marcante - ou sei lá por qual critério a gente grava umas coisas e esquece outras. É como se plantássemos memórias uns nos outros, sem ter a consciência de quanto isso pode afetar o HD alheio. 

Ou sem ter a consciência exata se do que dissemos, fazemos, ficarão ou não nas memórias alheias. Bem, dizem por aí que a memória não é exatamente um registro da realidade, mas uma interpretação da mente. Posso entender isso de algumas maneiras, uma delas é que minhas memórias se modificam conforme vou me recordando delas. Provavelmente alguém já te lembrou de coisas sobre você que esse alguém nunca esqueceu, mas você mesmo não se lembra. É só uma reflexão que talvez não chegue a nenhum leitor. Ou fique na memória de quem acabou de ler.

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

4) Micro Ensaio Sobre a Inutilidade ou As Palavras de Jodorowsky

Sempre fui uma pessoa inútil. Costumam juntar a inutilidade a coisas não práticas. Para os chamados úteis: arte é inútil, poesia é inútil. Basicamente tudo aquilo que não tem uma resposta (na maioria das vezes financeira) rápida, clara, objetiva, é inútil. É por isso que eu sou inútil. Até quitar boleto em lotérica, para mim, é subjetivo. 
Cena mítica e mística de "Holy Mountain" (1973)
Não sei exatamente o que faço com toda essa inutilidade. Já produzi bastante: gravei discos, editei vídeos, escrevi livro. E daí? Fico pensando naquilo que o Jodorowsky disse: "Fiquei dois anos sem produzir a arte que eu produzia, porque precisava fazer algo que não fosse apenas alimentar meu próprio ego". Isso mexeu muito com a minha cabeça.

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

3) Há Poesia nas Planilhas do Excel

Nunca imaginei que eu, uma pessoa tão subjetiva, sem qualquer senso prático, pudesse se dar tão bem com o Excel. Há um ano, me enfiei dentro de uma repartição pública para organizar um arquivo composto por processos financeiros.

Meus dedos, tão acostumados a preencher laudas de ficção no Word, tiveram de se familiarizar com planilhas complexas e recheadas de contratos, editais e recursos humanos. Se aos 19 anos eu me apaixonei por Kafka, aos 30 eu o compreendo como nunca. O absurdo não tem seis patas e nem anda pelas paredes, nem é um macaco que relata uma transformação pessoal para uma academia.
O absurdo é a própria academia a quem o relato é dado. Eu, um ser humano, com telencéfalo altamente desenvolvido e polegar opositor, não me atinei sobre a minha própria metamorfose burocrática. Dia a dia remexo o absurdo em pastas suspensas além de tramitá-lo às repartições vizinhas. Será que os irmãos Campos conheciam a poesia concreta dessa argamassa administrativa? Tudo isso para dizer que não apenas me tornei prolixo e desnecessário como este texto, a academia e as repartições, como agora as planilhas preenchidas do Excel são os meus novos sonetos.

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

2) Menino tenta imitar Super-homem e consegue!

Superman (George Reeves)
Cancelei minhas assinaturas de revistas e jornais para assinar um periódico diário de Ficção. Agora, todos os dias, recebo manchetes imperdíveis sobre coisas que não existem. Ontem, por exemplo, 15 do 7 de 1900 e 40 e 10, a manchete estampada na capa dizia: "Menino tenta imitar Super-homem e consegue!". Consumi ansioso a matéria que, resumindo, narrava um pulo sensato (era uma criança) pela janela do décimo primeiro andar de um apartamento no Barro Preto. O menino passa bem. E disse que não voltará antes de ter comido pelo menos metade dos algodões celestes.

terça-feira, 15 de agosto de 2017

1) Só o bom poema se basta

Um bom poema me dá um tesão danado. Mas só o bom poema. Poema erótico? Não, qualquer bom poema. Aquele que você levaria para o deserto, pois só um bom poema é alimento no deserto. Uma vontade de escalar as paredes do quarto, lamber a torneira da pia, beijar estranho no corredor do supermercado, morder uma maçã como quem morde um seio, uma bunda, um dedo. O bom poema. Somente. Destilado em Drummond, Hilda Hilst, Dante, Cecília Meireles. 
Drummond curtindo a vida na praia de Ipanema

O bom poema é um dedo no cu, uma massagem no grelo, um bom poema é Bomba de Antimoralidade, a cruz de cabeça pra baixo, a Igreja católica vomitando num banheiro químico.  É Hiroshima dentro de nós. "Meu Deus, por que me abandonaste se sabias que eu não era Deus se sabias que eu era fraco". Um copo de água e gelo e "A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços". 
Hilda Hilst fumando um cigarrinho esperto

E rodeia a sala com o copo molhado e fala: "Se eu disser que vi um pássaro Sobre o teu sexo, deverias crer?". E caminha procurando a porta, sinônimo de passagem, e "Existe a noite, e existe o breu. Noite é o velado coração de Deus". E se apega ao copo, ao formato do copo, joga o copo na parede. Não há mais portas, só percepção. "Deixai toda esperança, ó vós que entrais!", e depois suplica pelo copo perdido. Um bom poema dá um tesão danado e desidrata.