De um escritor sem estilo
Aos curitibanos reserva-se um lugar particular de experimentação literária, vide Jamil Snege, Valêncio Xavier, Dalton Trevisan e, não menos provocativo, Manoel Carlos Karam. Este, um morador de Curitiba nascido na pequena cidade de Rio do Sul, Santa Catarina, que carregava em sua personalidade o cosmopolitismo e uma literatura que escapa à tradicionalmente realista literatura brasileira. Ele parece, do contrário, fazer da literatura um jogo, como o argentino Borges parecia arrostar também as suas tarefas. Nos demais países sul-americanos teria uma boa morada; as regras do óbvio, porém, são as mesmas do medo e, para fugir ao script, ele não se juntou aos compatriotas de língua espanhola – o autor é do Brasil.
A Manoel Carlos Karam deram a profissão de dramaturgo, jornalista, homem de tevê; atividades curiosamente não muito distantes de Valêncio, seu conterrâneo de coração. Seria a vida, entremeada por diversas mídias, aquela catalisadora de uma literatura multimidiática? Em outro capítulo, com o mesmo nome deste, falaremos mais.
Um grande não-livro, mas nem tão grande assim
Pescoço Ladeado por Parafusos não é um grande livro, por duas razões. A primeira delas diz respeito à quantidade: pouco mais de 150 páginas. A segunda razão: não é grande no sentido canônico, pois mais do que não ser grandioso, não tem a menor de intenção de sê-lo.
Seu humor e sua forma tratam a literatura não como uma arte soberana, mas como mais uma mídia de contar histórias, dizer através de textos. Nesses aspectos, também, o livro dialoga com o Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade. Manoel Carlos Karam produz em Pescoço Ladeado por Parafusos um pastiche, ou uma reunião deles. A palavra “paródia” não casa bem como casaria à interpretação do livro de Oswald. No caso de Karam, os diferentes gêneros fazem parte de um arsenal técnico: o que nos ensinou a história da literatura e dos gêneros literários? Estamos no início do século XXI, já podemos usar de todas essas experimentações para continuar experimentando, clamando pelo riso, cortando a ironia com navalha, desconstruindo o objeto encadernado e cheio de pompa, até com certa gratuidade, mas que tem em si mais de pastiche do que paródia.
De um escritor sem estilo
Em reportagem do Jornal Cândido do Paraná, diversos autores citam a contribuição de Karam para as letras brasileiras e de como seus livros formam um oásis de experimentação e humor. Carlos Henrique Schroeder deixou estes dizeres: “Foi Karam quem me ensinou a palavra ‘possibilidade’. Sim, a possibilidade de convulsionar uma narrativa, a possibilidade de rir do leitor, de si mesmo, de tudo, e também um segredo: a literatura não tem margens, é um campo vasto e uma solidão compartilhada”.
Marçal Aquino diz o seguinte: “Karam nunca é hermético ou obscuro. Ao contrário. Sua escrita é de uma clareza abusada. Porém, está o tempo inteiro desafiando a imaginação do leitor com jogos aliciantes. Ou seja, exige um leitor com imaginação”.
“Possibilidade” é uma palavra de muitas possibilidades – me perdoem o humor inevitável (até por escrever sobre uma das obras de alguém com ironia sempre afiada). Uma palavra de muitas possibilidades como o livro de Karam. Um livro aberto, com numerosas narrativas, ora complementares, ora díspares. Dando ao leitor a oportunidade de uma leitura rizomática, em que começo, meio e fim não têm fim, meio, nem começo. Parte-se de onde é possível.
Jornal da Guerra Contra os Taedos
Os capítulos (ou pequeno livro) intitulado Jornal da Guerra Contra os Taedos são feitos de comentários breves em tom jornalístico sobre uma guerra travada contra um povo imaginário que é idêntico ao povo que o combate. Nada melhor do que uma dessas demonstrações na página 7, a partir de um narrador em primeira pessoa, como um representante do povo que luta contra os taedos
A guerra contra os taedos já durava três anos quando chegou o emissário do papa para nos informar que era pecado entrar em guerra contra os taedos. Como não fomos nós que entramos em guerra contra os taedos mas os taedos que declararam guerra contra nós, matamos o emissário do papa. Ele não deu a outra face porque estava morto.
Um grande não-livro, mas nem tão grande assim
Para Antonio Candido, Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, foi um livro que poderia ter sido grande (no sentido de canônico, profundo), porém não chegou a acontecer, sobrou possibilidades, faltou-lhe grandeza. Já para Haroldo de Campos, Serafim Ponte Grande, como intitulado em seu ensaio, foi um grande não-livro. Fiquemos com a definição do último para também escrever sobre Pescoço Ladeado por Parafusos.
Anotações sobre números
Os capítulos assim nomeados podem ser lidos como um livro de aforismos tendo como temática os números.
Há um sem-número de números.
Um capítulo da História pode cair no esquecimento. Mas nunca o número do capítulo.
Último número só nos shows de mágica.
Era 1 vez.
O inumerável é uma tolice. Ou 2 tolices. Ou 3 tolices. Ou 4 tolices. Ou 5…
Um grande não-livro, mas nem tão grande assim
Editado em 2001, não à toa na extinta editora de Joca Reiners Terron, a sintomática Ciência do Acidente, no primeiro ano do ano que viria a ser conhecido como aquele do Bug do Milênio, o livro de Karam tem em sua confecção o espírito da época: informação em excesso, narrativa fragmentada ou narrativas, descrença na ordem etc.
Haroldo, em texto sobre Serafim, logo no início pontua: “O romance-invenção Serafim Ponte Grande, de Oswald Andrade, escrito de 1929 para trás (ou terminado em 1928, como se lê no prefácio) e publicado em 1933, é uma dessas obras que põem em xeque a ideia tradicional de gênero e obra literária.”
No livro de Karam dá-se o mesmo: o leitor está diante de um aglomerado de narrativas e aforismos que podem ser vários livros e talvez nenhum, configurando o que Haroldo dá o nome de grande não-livro – no caso de Pescoço, até melhor pequeno não-livro. Em todo momento, por sua estrutura fragmentada, Pescoço Ladeado por Parafusos repensa a própria noção de livro. Cada capítulo pode ser lido como capítulos de um livro separado. A profusão de temáticas e gêneros literários (matéria jornalística, aforismos, poemas etc) criam possibilidades, tensões e arcos narrativos diversos.
Pescoço Ladeado por Parafusos ou o não-livro de Karam é uma rede em que os fios se unem não por uma afinidade temática, mas pela disposição dos textos e do próprio objeto encadernado, como se as histórias se juntassem porque alguém as costurou, mas não que os textos tenham se costurado pelas similaridades.
De um escritor sem estilo
O autor não nega as suas influências, não as esconde, pelo contrário, em Pescoço Ladeado por Parafusos as citações são diretas (não no sentido acadêmico com aspas, mas sim ao nomear personagens, citar o nome dos autores ou obras em determinadas passagens ou títulos: Kafka, Cortázar, Perec, Buñuel). A Kafka, podemos indicar o absurdo das situações e uma citação direta aqui e ali; a Julio Cortázar, o capítulo “Projeto de Bestiário”; a Georges Perec, a construção, os próprios mecanismos que deverão ser respeitados durante a confecção do romance(?), além de uma confissão sobre gostar deste autor e de suas brincadeiras em entrevista ao programa Persona; a Buñuel, o surrealismo e uma citação do próprio nome do diretor espanhol; a Machado, Karam deve o humor e a ironia. Karam é um fanático pelo Bruxo do Cosme Velho.
Os capítulos que são livros
Os nomes dos capítulos se repetem durante todo o pequeno não-livro de Manoel Carlos Karam. Repetem-se mas contam histórias diferentes. Alguns continuam uma narrativa pregressa, outros reinventam toda a roda. As temáticas se repetem, complementam-se. Por isso, podem ser lidos como livros únicos. Nessa leitura da escolha, caso o leitor opte por ler apenas o Jornal da Guerra contra os Taedos, terá ele um pequeno livro com a coerência possível de uma temática única, mas não garante a segurança de um romance do século XIX. Os principais capítulos são: Jornal da Guerra Contra os Taedos, Capítulos numerados: 1, 2, 3…, Projeto de Bestiário, Anotações sobre números e outros. Os nomes dos capítulos se repetem durante todo o não-livro de Manoel Carlos Karam, como esta frase neste parágrafo.
Um grande não-livro, mas nem tão grande assim
A metalinguagem é uma das ferramentas usadas pelo narrador (se é que possível usar o singular). Nos capítulos numerados, um dos narradores expõe suas escolhas: como deverá se chamar o personagem dessa história? Aqui, o livro é pensado e construído conforme é escrito.
A falta de enredo é latente: não se conta uma história, contam-se várias e nenhuma delas é suficiente. Num primeiro momento, essa profusão de narrativas, que desfocam o leitor e o conduz a um abismo, deixa o livro instigante. Como receptores das narrativas, queremos juntar os cacos, colocar sentido no mosaico. Ora os narradores (que também são vários) parecem nos dar um mapa confiável, ora nos colocam em um labirinto sem o fio de Ariadne.
De um escritor sem estilo
Em entrevista filmada ao programa Persona, Manoel Carlos Karam cita um amigo (do qual não aponta o nome, mas uma frase que poderia defini-lo) e que parafraseio aqui: “Quando pego o livro para ler, já sei que é o Karam, justamente por não ter ali um estilo”. O autor repete a frase com uma risada. Ao entrevistador, novamente, diz escrever sempre um pouco por dia. A sua ideia de literatura como experimentação, como jogo, faz com que, para cada livro, ele tenha de reescrever a própria biografia, as próprias obsessões. No caso de Pescoço Ladeado por Parafusos, não é diferente. Todos os seus livros podem ser entendidos como a coletânea de vários livros.
Capítulos numerados: 1, 2, 3...
Um narrador em terceira pessoa inicia uma investigação para descobrir como deverá ser o nome de um personagem, elencando características possíveis dadas a nomes distintos. Aqui, o tom metalinguístico é predominante. A narrativa se constrói enquanto é escrita, o narrador está cheio de dúvidas e espera saciá-las enquanto pensa sobre os nomes, como no capítulo de número 2
2. Se a escolha de prenome é difícil, pode-se cogitar que o indivíduo seja chamado pelo sobrenome. Oliveira seria inoportuno. Gonçalves, resumindo o roteiro, trocaria o dia pela noite ou a noite pelo dia ou trocaria alguma outra coisa. Carvalho, pelo destino anunciado pelas cartas, nada feito.
Projeto de Bestiário
Aqui, para cada vez que aparece este capítulo, uma história distinta envolvendo os nomes pensados anteriormente é contada. Esses capítulos podem ser considerados pequenos contos. Lê-los por escolha única dará ao leitor a perspectiva de um livro de microcontos. Esse capítulo é, também, uma espécie de “teste de atuação”, como se o narrador estivesse testando os nomes anteriormente pensados em ações cotidianas – como esses personagens se comportariam?
Carlos parou junto à janela e falou olhando para fora. Anos e anos de experiência e apenas mais uma receita para não ficar sóbrio, disse baixinho. Guida ficou em silêncio. Carlos percebeu que ela não havia escutado. Deu as costas para a janela e repetiu: anos e anos de trabalho e apenas mais uma receita para não ficar sóbrio.
Um grande não-livro, mas nem tão grande assim
Assim diz Haroldo de Campos sobre Serafim Ponte Grande, mas ao Pescoço Ladeado por Parafusos podemos dizer o mesmo.
O familiar nos aparece como algo novo, desconhecido, se nós alterarmos as relações normais de sua apresentação por um “efeito de estranhamento”.
O teórico nos fala sobre o desnudamento do processo, já que o livro é um mostrar da própria feitura do livro. Ele cita Tristram Shandy como uma luz que demonstrou os automatismos do objeto livro, mudando a cara do mercado editorial assim como da literatura romanesca, já no século XVIII, por Laurence Sterne.
O Serafim, de Oswald de Andrade, o Tristram, de Sterne, assim como o Pescoço, de Karam, são livros que põem em discussão as suas próprias estruturas. Livros que falam de si mesmos – não apenas.
Colcha de retalhos
Pescoço Ladeado por Parafusos é híbrido, feito de colagens, como num quadro cubista. Filho mais do cinema do que da literatura, talvez. Um livro de prosa e de montagem. União de diferentes gêneros, de diferentes mídias, apesar de totalmente texto. Como bem assinala Haroldo de Campos
A colagem — e mesmo a montagem — sempre que trabalhem sobre um conjunto já constituído de utensílios e materiais, in-ventariando-os e remanipulando-lhes as funções primitivas, podem se enquadrar naquele tipo de atividade que Lévi-Strauss define como “bricolage” […] a qual, se é característica da “pensée sauvage”, não deixa de ter muito em comum com a lógica de tipo concreto, combinatória, do pensamento poético.
Capítulos numerados: 1, 2, 3…
O narrador dos capítulos numerados entende que o personagem principal é a junção de vários outros, como a criação do doutor Frankenstein. Aquele que tem o pescoço ladeado por parafusos.