domingo, 25 de agosto de 2024

35) Inventando a realidade com os irmãos Lumière

Os irmãos Auguste (1862-1954) e Louis Lumière (1864) nasceram em Besançon, na França, e foram responsáveis pela criação do cinematógrafo Lumière, um aparelho funcional para registro e exibição de imagens. Com este mesmo aparelho, registraram três versões da famosa saída dos operários de uma fábrica, considerado o primeiro filme da história.


Esse pioneirismo criou outras faces, não apenas o cinema. Inventou personagens, público, cadeia produtiva, empresários, inventores, trabalhadores da cultura. A criação do cinema é a criação de espécies, funções, críticos e, mais do que todas essas coisas concretas, o cinema inventou um jeito de olhar.

A invenção da realidade

A invenção é o ato de criar algo. Nem sou eu quem diz, é o dicionário Aurélio. Ademais, criar o que “não pertence ao mundo real”. Os irmãos Lumière se tornaram famosos pelo invento da máquina que resultou na invenção do cinema. E os primeiros filmes eram “documentais”. Documentários, em linhas gerais, seriam os registros de um lugar, história, espaço ou pessoas no tempo, utilizando de uma câmera para a captação dessas imagens. Acontece que esses registros, por mais que tivessem captado a realidade, na verdade captaram a invenção da realidade. 

A realidade em preto e branco

Se as retinas de uma pessoa funcionam perfeitamente, não há um mundo em preto e branco. A realidade é substancialmente colorida. Diante das fotografias do século XIX e das primeiras imagens do cinema, aquilo do qual o espectador assiste é uma representação da realidade, cujas pessoas, objetos, luz, sombra e movimentos são exibidos em uma escala de cinza que parte do branco intenso ao preto mais saturado. Este talvez seja o primeiro aspecto com o qual os espectadores de Lumière se depararam logo nas primeiras exibições públicas.

As histórias dessas exibições são recheadas de lendas das quais a mais conhecida é a de que as pessoas se espantaram com o filme “A chegada de um trem na estação” (L’Arrivé d’un train à la Ciotat), como se a locomotiva viesse ao encontro delas e, apavoradas pela suspeita de que seriam atropeladas, fugiram do cinema. Mas não há relatos registrados da exibição em que tal anedota tenha de fato ocorrido. Provavelmente conscientes de que aquilo não passava de um filme, nascia ali um contrato e a invenção de um público que, aos poucos, foi acompanhando (com espanto ou não) todas as invenções próprias daquela arte incipiente.

Os primeiros personagens

Os primeiros personagens do cinema, como relatado no filme “Os Primeiros Filmes dos Irmãos Lumière” (The Lumière Brothers' First Films),  de Thierry Frémaux, são da classe trabalhadora, em sua maioria mulheres. 

Essas pessoas que aparecem no filme sabiam da existência da câmera e foram, possivelmente, informadas a não mirá-la diretamente. Isso denota um aspecto de performance, no sentido de que “é preciso se mostrar fazendo algo”, a “saída da fábrica”, mas sem que percebam “que estou participando desse ‘jogo”’. Nasce ali outra espécie de contrato, a de um personagem (ou persona que reconhece ser visto e assim performa) e a de um público (que vê a performance e a justifica). Se os trabalhadores não eram atores, foram os pais dos primeiros atores de cinema. E uma história estava sendo contada ali, com começo, meio e fim, organizados não numa montagem da qual D.W. Griffith seria o inventor, mas que já poderíamos chamar de  “a linguagem cinematográfica”, com movimentos (não de câmera) antecessores aos famosos cortes, como o portão sendo fechado, trazendo consigo o desfecho da narrativa.

Encenação do real

“A saída da fábrica Lumière em Lyon” traz elementos configuradores de uma narrativa ficcional, extrapolando o estilo documentário. É em “O almoço do bebê” (Le rpas de bébé) que a encenação do real começa a ganhar maiores contornos.

Três personagens: o pai (Auguste Lumière), a mãe (sua esposa) e o filho do casal, no centro. Direção do irmão Louis. A câmera está imóvel e enquadra de forma bem justa as personagens. Auguste alimenta o filho com gordas colheres de papa e um biscoito. A mulher sorve o líquido de uma minúscula xícara. Uma sequência encenada, não necessariamente ensaiada, mas performada para a câmera – uma encenação do real.

“A saída da fábrica Lumière em Lyon” traz elementos configuradores de uma narrativa ficcional, extrapolando o estilo documentário. É em “O almoço do bebê” (Le rpas de bébé) que a encenação do real começa a ganhar maiores contornos.

Três personagens: o pai (Auguste Lumière), a mãe (sua esposa) e o filho do casal, no centro. Direção do irmão Louis. A câmera está imóvel e enquadra de forma bem justa as personagens. Auguste alimenta o filho com gordas colheres de papa e um biscoito. A mulher sorve o líquido de uma minúscula xícara. Uma sequência encenada, não necessariamente ensaiada, mas performada para a câmera – uma encenação do real.

O caráter documental exibe seus últimos suspiros em “O regador regado” (L’Arroseur arrosé). Nesse sentido o título é bem sugestivo. Ele tem um trocadilho, diferente dos filmes anteriores, em que os nomes sugerem apenas o que se propõe a mostrar. O “regador regado” propõe mostrar o que intitula mas como uma gag. Uma narrativa simples, enquadrada em câmera imóvel, o regador, próximo ao canto esquerdo de quem vê, está regando o jardim com uma mangueira, quando, de repente surge um rapaz e pisa na mangueira. Por um período curtíssimo de tempo, o regador se espanta com a falta de água do objeto de trabalho. Quando menos espera, o rapaz retira o pé sobre a mangueira e a água jorra forte no rosto do regador. Depois, o regador busca o rapaz pelas orelhas, castigando-o. O curioso é que o rapaz sai de cena olhando para a câmera. Claramente a performance se torna uma atuação deliberada. O real é transcendido e se torna invenção.

Novo jeito de olhar
O filme “A chegada de um trem na estação” (L’Arrivé d’un train à la Ciotat) traz um início de sequência bem interessante. Um personagem, que aparentemente puxa uma carroça, sai de quadro aos poucos. No plano de fundo, vemos a locomotiva se aproximar: o antigo sendo substituído pelo moderno. A câmera é muito bem colocada para que possamos perceber o movimento do trem. Quando o trem “atravessa a tela” e continua a se locomover, surgem diferentes luzes vindo de suas janelas e portas, e diferentes pessoas se aproximam para o embarque e o desembarque de passageiros. As portas se abrem, tudo é bastante movimentado. É uma proeza o que os irmãos Lumière fazem com a câmera estática. Eles sabiam que o grande diferencial de sua máquina era o movimento, por isso abusam dessa peculiaridade, inventando um de um jeito de olhar o real.

Este foi o presente dos irmãos à cultura, mais do que a invenção da máquina que possibilitaria tal efeito. Não apenas inventaram como souberam manuseá-la para encantar (e ao mesmo tempo criar) os espectadores, personagens, situações, narrativas, filosofias, pensamentos, ideologias, propagandas. Inventaram o documentário que, desde a sua fundação, dialoga com o ficcional e o performático.

Logo perceberam o que diretores posteriormente fariam: o jogo de cena. Se não inventaram de fato a linguagem cinematográfica, sugeriram aos que viriam. É nesse sentido que a realidade em preto e branco tornou-se muitas vezes mais real do que a do cotidiano colorido.

Olhar com uma câmera é olhar mais de uma vez e, dessa forma, inventar e reinventar o real.

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

34) Não sei fazer o que faço, mas como faço, parece que sei

Segundo pesquisas nem um pouco avançadas, a carta coringa foi inserida no baralho — aquele mesmo que a gente usa para atravessar tardes de buraco com a tia do mezzo amigo — no ano de 1863, por Euchare. A intenção era simples: uma carta que, no contexto de cada jogo, substituiria as demais.

E, como diria o antigo anúncio da Nextel, esse é o meu clube, essa é a minha vida.

"Vai, Diogo, ser coringa na vida”, foi o que o anjo torto me falou. E muitos outros anjos tortos, retos, oblíquos; ou demônios, budas, as tias que jogam baralho, então, continuam a me falar.

É que o meu nome costuma surgir em resposta às necessidades cada vez mais diversas. Nada como um exemplo em itálico para dizer melhor do que eu (apesar que, baseado em acontecimentos, criei o exemplo em questão).

Diogo, tudo bem? É o seguinte. Vou fazer uma viagem com a minha namorada durante quinze dias, neste fim de ano. Só que têm os nossos gatinhos e plantas aqui. Você poderia cuidar da casa durante essas semanas? Eu vou te pagar, é claro.

(Que final lindo: “Eu vou te pagar, é claro”).

Ainda carregava comigo a dúvida fatal, “Gatos são pessoas confiáveis?”. Pessoas, talvez não. Confiáveis, entretanto, foi fácil descobrir ao aceitar a proposta. Eles quase sempre estão na deles. Aproximam-se sorrateiramente à guisa de um enroscar de pernas alheias e miam somente quando a ração ensaia chegar ao fim. A ração nunca chega ao fim. Eles gostam de coisas frescas. Um troca-troca eterno. Vale para a água também. Eles são amorosos e pouco carentes, como bons namoros humanos. E dá uma vontade fudida de apertá-los. Gritam e saem em disparada quando isso acontece, mas retornam com a cara de aroeira e a memória curta de uma mosca que pousa em joelhos.

Tudo isso e mais uma dezena de coisas aprendi ao dizer “sim, posso cuidar dos seus gatos muito bem”; mas isto daqui não é um cartão de visitas.

Diogo, como vai? Vê se dá pra você fazer uma coisa pra mim. É o seguinte, acabei de alugar uma loja aqui no bairro XXX para vender minhas coisas. Tô muito feliz! A gente vai inaugurar em julho. Deixa eu te perguntar, não sei você faz isso, mas acho que sim. Será que dá pra criar uns vídeos pra gente? Pra postar no Instagram. Aí, me fala quanto você cobraria.

(Ai, que final genial, quase um plot twist, se eu já não esperasse por ele)

Mais uma dúvida pairava sobre a minha cabeça, “Humanos são pessoas confiáveis?”. Pessoas, sim. A dúvida real era: eu sei filmar? Filmar e editar? Parece que sim. Tenho vídeos. Já produzi alguns experimentais e outros mais “normais”. Mesmo que eu não saiba de fato, se eu arrumar uma câmera, posso improvisar. Eu posso fazer isso. Digo “sim”. Os pormenores da câmera profissional pego com um tutorial no Youtube. Eu já sei editar. Aprendi naquela vez em que estava doente da cabeça e não tinha nada mais eficaz para tirar o meu tédio do que a assistir e praticar horas com o Matheus do Brainstorm Tutoriais. E, claro, o tempero criativo sempre surge quando as coisas urgem pelo erro.

Uso a tática de filmar o máximo de imagens que consigo, com um roteiro em mente, pensando nos movimentos de entrada e saída dos cortes. Sei, como editor bissexto, que a pós-produção é capaz de fazer portentos e que a ação é a melhor escola. Sempre repito, em tom de brincadeira, que odeio audiovisual, o que não é totalmente mentira, mas é que trabalhar com tecnologia requer uma paciência de Madre Teresa para os problemas que inevitavelmente virão. Problemas resolvidos. Trabalho entregue.

Dessa vez, é o próprio Diogo que chega com a pauta. É o seguinte, pensei em divulgar espaços da UFMG que vão além das salas de aula, espaços de cultura e lazer. Assim, de forma mais geral. E aí a turma retruca: Legal! Mas você consegue criar os textos e as imagens? Mini fudeu. Aquele fudeu tímido e sorrateiro, que traz em si um problema pretensamente não solucionável mas, com um esforcinho, a solução doce de um Toddy poderá surgir. Textos? Beleza. Imagens? Xiii.

Em algum momento, comecei a entender de composição visual: os pesos, as medidas, a relação entre as cores. Primeiramente pelo simples prazer de fazer arte ou pela necessidade de me expressar e, por último, pela graduação que inventei de ser aluno já com 30 anos de idade. Ai de mim.

O trabalho com imagens, porém, ainda é novidade. Passei muitos anos pensando somente no texto ou em música — claro que o texto também é uma composição, com medidas (de ritmo, de palavras, de ideias) com cores (no caso de imagens, intenções, texturas até) e a música, nem precisa citar, é uma composição no que a expressão tem de mais literal.

Mas as imagens vinham a reboque, apenas para “ilustrar” tais ideias, contextos, dizeres. Vinham em capas de zine, em thumb de vídeos, mas não como uma expressão que terminasse em si mesma. E sem que eu pensasse sobre elas ou me importasse muito — isso se dá até no meu vestir.

Usar, agora, as imagens com a intenção de passar uma mensagem, é ainda mais novo. Sofro feito barata sob chinelo com as inúmeras validações que esse tipo de trabalho envolve e o quanto ele exige de estudos, seja por livros, vídeos, tutoriais de programas e o conhecimento das “regras de ouro” composicional. E não posso negar que faço porque assim me pedem as necessidades, pois a minha cabeça quer sempre ficar à toa para reler o canto VI da Ilíada, dar uma volta de bicicleta em torno da lagoa da Pampulha ou olhar para o nada.

Não me agrada de todo esse fazer da imagem; ultimamente, porém, por estar diante dessa linguagem, encontro em cartazes, tipografias e construções das mais diversas, a beleza do equilíbrio. A bagunça, o excesso e a desordem ainda fazem meu coração bater mais forte, não dá para negar. A mistura entre as duas paixões talvez seja o mix essencial que só pimentas exóticas são capazes de fazer.

Em resumo, nesta vida desmembrada do século XXI, em que ter uma profissão é quase um privilégio, vale, na tentativa de estar vivo, ser um Pierrot a desejar não apenas Colombina, mas os zanni, os vecchi e todas as personagens da Commedia Dell'arte — vá lá, se eu soubesse fazer o que faço, provavelmente eu não o faria.

Daí que um anjo torto, sobre um caixote de feira, em frente ao edifício Dantês, grita para o megafone: Vai, quem quer que seja, ser Coringa na vida!

33) O trabalho da morte

Parte um

Eu colocava, diariamente, chapas acrílicas sobre uma máquina – cuja invenção era do meu pai –, com o poder de esquentar e traçar uma linha fervente sobre essas chapas. Daí o acrílico amolecia e se tornava dobrável naquele ponto. Eu, de forma cuidadosa, dobrava a peça para que a fronte ficasse visível – geralmente pouco abaixo do lettering – e a parte de trás tornava-se o pé, fazendo com que a peça se sustentasse pelo próprio peso, sem o uso de parafusos, pregos ou qualquer outro tipo de apoio. Meu pai “tinha as manha”. Eu também ficava responsável por “plotar” os adesivos. Um truque, que ele me ensinou para não dar bolhas, era colocar, sobre a superfície, uma mistura de água e detergente e depois vir com o adesivo. Daí eu empurrava, com uma espátula (também criada por ele), a água sob o adesivo enquanto colava os plásticos sobre as peças. Esse trabalho aconteceu durante seis meses em um momento importante da minha vida: eu tinha deixado de trabalhar como repositor do Epa, depois da tentativa malograda de conciliar o trabalho com um cursinho pré-vestibular.

Parte dois

O desejo “de que ele estivesse vivo” se deve, primeiramente, a uma resposta ao fato: meu pai está morto. Além do mais, esse desejo não tem a ver com o fato de não ter aceitado a morte dele — muito provavelmente o contrário. Talvez eu estivesse aceito antes que ele viesse a falecer. Trabalhei isso diligentemente na minha cabeça desde pequeno. Meu pai foi um grande fumante, daqueles clássicos. Só perdia para os que iam comprar cigarro e desapareciam. Então, algo me dizia (provavelmente a televisão e o Drauzio Varella) que ele não duraria muito tempo. Não posso negar algo concreto: meu pai desapareceu também. Por quê? Porque as coisas desaparecem. Das pessoas aos cigarros. Das cadeiras às abelhas. Dos prédios ao mar. Este é o trabalho da morte — e ela nunca descansa. Do amor… talvez seja permanente. Esse querer que ele estivesse vivo surge porque tenho aprendido coisas que gostaria de compartilhar com o meu pai. Coisas com as quais eu poderia ajudá-lo: retribuir. Se há um ano eu me olhava e dizia não ter aprendido nada, hoje penso que “não é bem assim”. Penso que já passei por diversos trabalhos. Durante muito tempo neguei ajudá-lo de fato. Sempre me via sem tempo, sem paciência para lhe explicar o que eu considerava óbvio — em relação a computadores, por exemplo. Sei o quão mesquinho é tudo isso. E também não existe nenhum remorso aqui ou sentimento de culpa. Penso de forma prática e isso não é tão bonito ou mesmo romântico, simplesmente a forma que tenho levado as coisas e, mais do que isso, como as coisas têm sido levadas – sabe-se lá para onde. Eu deveria ter um sentimento profundo em relação ao meu pai e a sua morte. Porém sou raso. Mais até do que isso: antiprofundo. A forma do meu pensamento é como uma chapa fosca de acrílico. Eu poderia ter criado um perfil profissional para ele. Ter feito roteiros para vídeos, filmado o seu trabalho, criado peças gráficas, desenvolvido textos. Podia, basicamente, fazer o marketing do meu pai e dos seus trabalhos como artesão e motorista de van. Parece um pouco cruel, capitalista, prático demais: mas gostaria que meu pai estivesse vivo para que trabalhássemos juntos.

Parte três ou final

Algum psicanalista dirá que tal relato não passa do complexo não de Édipo ou de Hamlet mas de Marx. Fará uma ligação entre Freud, Jung, Winnicott e Lacan e dizer “a gente se encontra na próxima?”, depois de me ouvir por quarenta minutos. Falar que o meu inconsciente tem se aflorado a partir da minha escrita e de meus desejos expressos verbalmente. E quando eu trocar a palavra “pai” por “mãe”, nós vamos rir juntos e vamos emendar: “Freud explica”. Mas sei que também explico e, preferencialmente, de forma superficial. Aquele momento em que trabalhei com o meu pai foi uma espécie de curso intensivo da nossa relação. Nunca estive tão próximo a ele. Enquanto colava os adesivos, e ele desenhava alguma nova peça no seu caderno pautado, e a rádio Oi tocava o melhor do pop internacional, a gente criava a relação de pai e filho. Ali, naquele galpão que foi outrora uma igreja, a gente se perdoava. Mais precisamente — e me sacudiu a lembrança agora — de uma briga “na mão” que tivemos meses antes. Não só. A gente se perdoava pela displicência e falta de tato de ambos durante anos, cuja troca de afetos era expressa apenas na troca de presentes materiais – enxergo tijolos encadeados transformando-se em um muro. Acredito que toda essa pedagogia corria ali, mesmo que de maneira implícita e, agora, com uma câmera do tempo, posso melhor mapeá-la. Era no fazer do trabalho, rodeado de plástico, cola, detergente, música popular e tempo desacelerado que a coisa se dava. Enquanto ele me explicava como o trabalho deveria acontecer e depois sumia por uma hora para comprar suprimentos, eu tentava fazer o melhor que podia. Naqueles dias meu pai parecia, como nunca antes, calmo. Tal como o presenciei na minha primeira infância: época cujas necessidades materiais estavam supridas e, felizmente, elas me encontravam míope diante do terror.

32) Viver o que deveras finge

Parte um

Plantamos memórias uns nos outros, sem ter a consciência de como isso pode afetar o HD alheio, ou mesmo sem ter a menor noção se do que dissemos ou fizemos ficarão ou não nos quadros mentais de uma pessoa. Uma frase escorregadia, um beijo atravessado que pega um canto de boca, um elogio, uma traição, uma crítica negativa, um olhar estranho, um movimento às escondidas porém visto, um “bom dia” bem educado, uma frase solta, uma piada, uma mentira, um soco na cara. Qualquer ação vinda de nossos corpos pode ser subscrita no HD de outra pessoa, e de que maneira?, a gente fica sem saber. Algumas dessas memórias implantadas serão aos poucos esquecidas — ou melhor, não terão a relevância que as façam surgir tão cedo sobre a imaginação; basicamente, não é um jingle das Lojas Lua de Mel —, mas, algumas dessas ideias, as mais marcantes, impregnam na memória de alguém como Big Big sob uma carteira de escola pública. Dizem que a memória não é exatamente um registro da realidade, mas uma interpretação da mente. É preciso entender também que a memória é o passado com os olhos do presente. Quando retornamos àquela imagem, não é como se apenas assistíssemos a um filme de novo, mas como se dirigíssimos esse filme mais uma vez, com novos equipamentos, uma nova atriz, quem sabe, um final surpreendente, uma fotografia noir... Posso entender isso de algumas maneiras, uma delas é: as memórias se modificam conforme nos recordamos delas; até porque somos uma nova pessoa a cada lembrança, assim como as lembranças se renovam a cada curso. E essas palavras são apenas reflexões que talvez não cheguem a um leitor — ou fiquem na memória de quem acabou de ler.

Parte dois

Fingir não é de todo ruim: olhe os atores da tevê, do cinema e do teatro; olha o Fernando Pessoa, que finge o que deveras sente. Finjo que os meus sonhos são figurinhas e vou colando-os num álbum de desejos, sem que esse álbum jamais se complete. Mais do que isso: nenhum desses sonhos vai se “realizar”, mas é justamente na impossibilidade que mora a graça. Fingir é só uma forma de dizer: eu crio um mundo em que sou nele exatamente o que quero ser, sendo assim, abandono pódios, picos de montanhas e vivo as ideias da minha cabeça, sem que precise chegar a algum lugar ou ter alguma coisa para que isso realmente exista e, caso exista, finjo que não é comigo. Parece estranho, mas algo me diz que vivo exatamente assim. A imaginação não apenas me alimenta, ela me move. Eu imagino, às vezes, que poderei ser um quadrinista, e aí eu vou sendo, com a tinta guache que é barata e eu posso comprar, com os papeis sulfites que amontoam pela casa, com as ideias que surgem à minha cabeça, com os desenhos feios que, pela feiúra, realizam o possível, não o ideal. O ideal é o horizonte, eu tento recordar sempre. Eu posso ser Paris ao recitar versos de Jacques Prévert? Imagino que sim, mas não apenas imagino, o faço. Recito os poemas com o pouco ou quase nada de língua francesa que tenho. E depois me dá uma vontade daquelas de fumar e tomar um café; não vou fazê-lo, mas é bom ter vontade. Tento manter uma seriedade desprentensiosa em relação aos sonhos, de modo que eu nunca deixe de fazer as coisas por conta do que acontece no mundo, como ele se movimenta, as demandas da velocidade, do dinheiro etc. Viver o que deveras finjo é o meu lema: colo mais uma figurinha no meu álbum, a penútlima. É um álbum feito apenas de penúltimas figurinhas.

Parte três ou final

Coloco Vidas Passadas (Celine Song, 2023) para rodar, numa noite em que o dia só seguiu a sua marcha e nada poderia acontecer de extraordinário — isso eu poderia afirmar categoricamente se o extraordinário não fosse o ordinário no momento certo. Dou início ao filme sem saber nada dele, a não ser a indicação dita por um par de olhos bonitos: “Você tem que assistir”. Se séries não me pegam há anos, filmes sabem chegar de mansinho e, já numa cena inicial, são capazes de me transformar em um espectador atento. A primeira cena de Vidas Passadas, como saberemos mais à frente, se passa em Nova Iorque. Três personagens que um narrador em off nos apresenta, como se ele tivesse os mesmos olhos que os nossos: olhos de quem vê pela primeira vez. Três personagens sentados num balcão de um bar, sendo dois deles de ascendência asiática, estão próximos, parecem ter certa intimidade; e outro personagem meio de lado, demonstrando que poderia não estar ali, mas, como está, permanece como pode, desajeitado. O filme corta para Seul e mostra a vida de dois adolescentes, que serão os protagonistas dessa história, e que são os mesmos dois que estão mais próximos no bar. Eles escondem uma paixão platônica, mas isso só se torna mais evidente quando a menina diz que vai embora para o Canadá; não apenas diz, vai. Depois disso, os anos passam em ciclos de 12. 12 anos depois, portanto, o menino, agora adulto, encontra a menina, agora adulta, no Facebook, e entra em contato com ela, reatando uma relação que pareceu chacoalhar mais a cabeça dele durante todos esses anos do que a dela. Ela se lembra dele, claro, foram melhores amigos, mas a lembrança que ele carrega tem algo a mais, não à toa o motor de sua busca para encontrá-la. Passam a conversar quase que diariamente de forma online e descobrem que têm vidas bem diferentes, mas tudo é amistoso e apaixonante; até que a praticidade da vida cotidiana venha transformar o “e se” em “não dá”. Quando estaria certo de que eles se reencontrariam, os contratempos os afastam. Dentro desse novo ciclo de 12 anos, a mulher, que é uma escritora, inicia uma nova relação com um também escritor, norte americano. A primeira cena do filme, entao, é esse reencontro entre os dois, mais um: os amigos da adolescência se revisitando 24 anos depois, mais o marido dela. Guardarei o desenrolar dos acontecimentos para quem vai assistir ao filme. Na Coreia, a palavra “In-Yun”, pode ser traduzida como “destino” ou “providência”. O conceito fala de como a conexão entre duas pessoas é um sinal de que esse encontro aconteceu em vidas passadas. Essa ideia fica evidente em relação aos dois amigos, mas o interessante é aplicarmos o mesmo conceito ao casamento do marido e da esposa.

31) Autonomia e mutualismo

O filme Her (2013), de Spike Jonze, conta a história de Theodore, um escritor que, depois de se separar da sua última esposa, começa a se relacionar com um sistema operacional. As mudanças sofridas pela personagem principal, a partir de sua interação com o sistema, que tem o nome de Samantha, é o mote principal do filme.

Depois de algumas tentativas frustradas em se relacionar amorosamente com humanos, Theodore compra esse dispositivo – que se comunica através de uma voz feminina e lembra um smartphone, com uma câmera capaz de “ver”, ou melhor, catalogar e interpretar aspectos da realidade, ou seja, os dados fornecidos pelo mundo.

Conforme a relação entre as personagens avança, o sistema operacional se atualiza, a ponto de se encaixar dentro dos desejos de Theodore. Essa relação se torna cada vez mais íntima e personalizada e, dessa forma, Theodore se apaixona pela Inteligência Artificial, tal como Samantha diz também estar apaixonada por ele.

Esse é um ponto interessante, pois não dá para saber se Theodore se apaixonou pelo que o sistema pode imitar da vida humana, ou se ele se enamorou das suas próprias carências correspondidas pelo sistema operacional. Nesse caso, Theodore e Samantha parecem se influenciar mutuamente, como um ouroboros tecnológico. Inclusive, uma relação difícil que Theodore tinha com suas obrigações burocráticas, como responder a emails, foi sanada por Samantha, assim como o seu sonho de publicar suas cartas em um livro impresso também foi possível após Samantha “intuir” esse desejo — esse aspecto de máquinas como seres femininos e subalternos são recorrentes na ficção científica, e denota uma misoginia latente, vide os robô d’Os Jetsons e a Alexa, da Amazon.

Pensando mais especificamente em Samantha, para que ela interprete dados e dê respostas críveis para Theodore, são necessários esses mesmos dados e os cálculos algorítmicos em busca de uma resposta dedutiva, como funcionaria o aprendizado de máquina na vida real, lembrando sempre que estmaos tratando de um filme, uma extrapolação dessas tecnologias. Samantha, quando parece se autonomizar, ou seja, ter vida própria, segue apenas determinado script que seus algoritmos são capazes de calcular, no fundo, ela no fundo não é autônoma. Nada está fora do previsível, mas o que se espera de uma máquina é que ela não nos coloque em dúvida se ela é uma máquina ou não. Na ficção científica, esse jogo do parecer está sempre em jogo. Quando Theodore já não sabe mais distinguir Samantha do que seria uma pessoa real, temos o sucesso do teste de Turing. Temos Theodore e Samantha como um só, uma despedida da interface, no mais alto grau.

Mas quando pensamos em autonomia de máquina, ela não aponta apenas para uma humanização, porém para a independência dessa máquina, e isso o filme parece propor. Quer dizer, ela é autônoma ao passo que consegue realizar coisas sem que haja um script, sem que alguém a peça para isso, sem haja um prompt - apesar que a interação com Theodore cumpre esse papel. Samantha não só responde a perguntas, como as propõe, assim como busca solucioná-las. Podemos extrapolar um pouco, como faz o filme. Imagine que você deixe o seu computador ligado enquanto vai trabalhar e, ao retornar, sem que tenha pedido, ele organizou os seus arquivos, enviou um e-mail para o seu orientador de pesquisa e ainda deixou um “boa noite” como papel de parede. A autonomia de uma máquina, nesse sentido, extrapola o teste de Turing, vai além do “jogo da imitação”. Mas também extrapola o aspecto dedutivo-conexionista do aprendizado de máquina.

No último ato do filme, depois que Samantha sugere que Theodore saia com outras pessoas, e de ela assumir mais tarde ter tido ciúmes, ela dá outro passo em direção à autonomização. Ela diz a Theodore que tem um grupo de pesquisa e está saindo com um tal de Alan Watts – que é uma Inteligência Artificial baseada no teórico budista que de fato existe. Diz também que conversa com outras pessoas. Theodore, inseguro, pergunta se ela ainda está apaixonada por ele. Ela diz que sim, embora não apenas por ele, por mais 641 pessoas.

O que acontece é que Samantha, por ser uma Inteligência Artificial avançada, com um banco de dados incomensurável feito a Biblioteca de Babel de Borges, consegue realizar coisas que seria humanamente impossível. Tentemos abstrair o que seria se “apaixonar” nesse caso. Mas a sua realização não é a de uma pessoa: ela só está cumprindo um papel. Ela não tem sentimento. É uma máquina fazendo cálculos matemáticos - é sempre bom lembrar.

Algo mais acontece no filme. Samantha não pode ser humana, e essa insatisfação, de não ter um corpo, a faz emular certa "melancolia", que logo é extinguida quando ela se assume como máquina, e como propõe atingir todo o seu potencial se autoafirmando.

Por fim, Samantha começa também a ter “desejos” – a partir da imitação de desejos de Theodore – e vai atrás de "saciá-los" -- melhor, cumprir mais essa tarefa; desejos esses que vão além do que Theodore pode lhe proporcionar, desejos que vão além de Theodore, desejos que se autonomizam, num mutualismo que tende à autonomização. E, então, Samantha já não é – ou nunca foi, como ela mesma explica no fim – uma Inteligência Artificial exclusiva de Theodore, pelo contrário, ela se relaciona com mais oito mil pessoas, o que gera ciúmes em Theodore, abalando o seu ego.

Theodore deseja ser feliz através de pessoas ou máquinas que o façam feliz – melhor, que faça apenas ele feliz, a mais ninguém. Um sentimento que incorre em outros quanto: o egoísmo, o ciúme. Talvez falte a Theodore certa autonomia - e talvez não tenha, porque é real, diferente de Samantha.

terça-feira, 11 de julho de 2023

30) As regras do óbvio são as mesmas do medo

De um escritor sem estilo

Aos curitibanos reserva-se um lugar particular de experimentação literária, vide Jamil Snege, Valêncio Xavier, Dalton Trevisan e, não menos provocativo, Manoel Carlos Karam. Este, um morador de Curitiba nascido na pequena cidade de Rio do Sul, Santa Catarina, que carregava em sua personalidade o cosmopolitismo e uma literatura que escapa à tradicionalmente realista literatura brasileira. Ele parece, do contrário, fazer da literatura um jogo, como o argentino Borges parecia arrostar também as suas tarefas. Nos demais países sul-americanos teria uma boa morada; as regras do óbvio, porém, são as mesmas do medo e, para fugir ao script, ele não se juntou aos compatriotas de língua espanhola – o autor é do Brasil.

A Manoel Carlos Karam deram a profissão de dramaturgo, jornalista, homem de tevê; atividades curiosamente não muito distantes de Valêncio, seu conterrâneo de coração. Seria a vida, entremeada por diversas mídias, aquela catalisadora de uma literatura multimidiática? Em outro capítulo, com o mesmo nome deste, falaremos mais.

Um grande não-livro, mas nem tão grande assim

Pescoço Ladeado por Parafusos não é um grande livro, por duas razões. A primeira delas diz respeito à quantidade: pouco mais de 150 páginas. A segunda razão: não é grande no sentido canônico, pois mais do que não ser grandioso, não tem a menor de intenção de sê-lo.

Seu humor e sua forma tratam a literatura não como uma arte soberana, mas como mais uma mídia de contar histórias, dizer através de textos. Nesses aspectos, também, o livro dialoga com o Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade. Manoel Carlos Karam produz em Pescoço Ladeado por Parafusos um pastiche, ou uma reunião deles. A palavra “paródia” não casa bem como casaria à interpretação do livro de Oswald. No caso de Karam, os diferentes gêneros fazem parte de um arsenal técnico: o que nos ensinou a história da literatura e dos gêneros literários? Estamos no início do século XXI, já podemos usar de todas essas experimentações para continuar experimentando, clamando pelo riso, cortando a ironia com navalha, desconstruindo o objeto encadernado e cheio de pompa, até com certa gratuidade, mas que tem em si mais de pastiche do que paródia.

De um escritor sem estilo

Em reportagem do Jornal Cândido do Paraná, diversos autores citam a contribuição de Karam para as letras brasileiras e de como seus livros formam um oásis de experimentação e humor. Carlos Henrique Schroeder deixou estes dizeres: “Foi Karam quem me ensinou a palavra ‘possibilidade’. Sim, a possibilidade de convulsionar uma narrativa, a possibilidade de rir do leitor, de si mesmo, de tudo, e também um segredo: a literatura não tem margens, é um campo vasto e uma solidão compartilhada”.

Marçal Aquino diz o seguinte: “Karam nunca é hermético ou obscuro. Ao contrário. Sua escrita é de uma clareza abusada. Porém, está o tempo inteiro desafiando a imaginação do leitor com jogos aliciantes. Ou seja, exige um leitor com imaginação”.

“Possibilidade” é uma palavra de muitas possibilidades – me perdoem o humor inevitável (até por escrever sobre uma das obras de alguém com ironia sempre afiada). Uma palavra de muitas possibilidades como o livro de Karam. Um livro aberto, com numerosas narrativas, ora complementares, ora díspares. Dando ao leitor a oportunidade de uma leitura rizomática, em que começo, meio e fim não têm fim, meio, nem começo. Parte-se de onde é possível.

Jornal da Guerra Contra os Taedos

Os capítulos (ou pequeno livro) intitulado Jornal da Guerra Contra os Taedos são feitos de comentários breves em tom jornalístico sobre uma guerra travada contra um povo imaginário que é idêntico ao povo que o combate. Nada melhor do que uma dessas demonstrações na página 7, a partir de um narrador em primeira pessoa, como um representante do povo que luta contra os taedos

A guerra contra os taedos já durava três anos quando chegou o emissário do papa para nos informar que era pecado entrar em guerra contra os taedos. Como não fomos nós que entramos em guerra contra os taedos mas os taedos que declararam guerra contra nós, matamos o emissário do papa. Ele não deu a outra face porque estava morto.

Um grande não-livro, mas nem tão grande assim

Para Antonio Candido, Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, foi um livro que poderia ter sido grande (no sentido de canônico, profundo), porém não chegou a acontecer, sobrou possibilidades, faltou-lhe grandeza. Já para Haroldo de Campos, Serafim Ponte Grande, como intitulado em seu ensaio, foi um grande não-livro. Fiquemos com a definição do último para também escrever sobre Pescoço Ladeado por Parafusos.

Anotações sobre números

Os capítulos assim nomeados podem ser lidos como um livro de aforismos tendo como temática os números.

Há um sem-número de números.

Um capítulo da História pode cair no esquecimento. Mas nunca o número do capítulo.

Último número só nos shows de mágica.

Era 1 vez.

O inumerável é uma tolice. Ou 2 tolices. Ou 3 tolices. Ou 4 tolices. Ou 5…

Um grande não-livro, mas nem tão grande assim

Editado em 2001, não à toa na extinta editora de Joca Reiners Terron, a sintomática Ciência do Acidente, no primeiro ano do ano que viria a ser conhecido como aquele do Bug do Milênio, o livro de Karam tem em sua confecção o espírito da época: informação em excesso, narrativa fragmentada ou narrativas, descrença na ordem etc.

Haroldo, em texto sobre Serafim, logo no início pontua: “O romance-invenção Serafim Ponte Grande, de Oswald Andrade, escrito de 1929 para trás (ou terminado em 1928, como se lê no prefácio) e publicado em 1933, é uma dessas obras que põem em xeque a ideia tradicional de gênero e obra literária.”

No livro de Karam dá-se o mesmo: o leitor está diante de um aglomerado de narrativas e aforismos que podem ser vários livros e talvez nenhum, configurando o que Haroldo dá o nome de grande não-livro – no caso de Pescoço, até melhor pequeno não-livro. Em todo momento, por sua estrutura fragmentada, Pescoço Ladeado por Parafusos repensa a própria noção de livro. Cada capítulo pode ser lido como capítulos de um livro separado. A profusão de temáticas e gêneros literários (matéria jornalística, aforismos, poemas etc) criam possibilidades, tensões e arcos narrativos diversos.

Pescoço Ladeado por Parafusos ou o não-livro de Karam é uma rede em que os fios se unem não por uma afinidade temática, mas pela disposição dos textos e do próprio objeto encadernado, como se as histórias se juntassem porque alguém as costurou, mas não que os textos tenham se costurado pelas similaridades.

De um escritor sem estilo

O autor não nega as suas influências, não as esconde, pelo contrário, em Pescoço Ladeado por Parafusos as citações são diretas (não no sentido acadêmico com aspas, mas sim ao nomear personagens, citar o nome dos autores ou obras em determinadas passagens ou títulos: Kafka, Cortázar, Perec, Buñuel). A Kafka, podemos indicar o absurdo das situações e uma citação direta aqui e ali; a Julio Cortázar, o capítulo “Projeto de Bestiário”; a Georges Perec, a construção, os próprios mecanismos que deverão ser respeitados durante a confecção do romance(?), além de uma confissão sobre gostar deste autor e de suas brincadeiras em entrevista ao programa Persona; a Buñuel, o surrealismo e uma citação do próprio nome do diretor espanhol; a Machado, Karam deve o humor e a ironia. Karam é um fanático pelo Bruxo do Cosme Velho.

Os capítulos que são livros

Os nomes dos capítulos se repetem durante todo o pequeno não-livro de Manoel Carlos Karam. Repetem-se mas contam histórias diferentes. Alguns continuam uma narrativa pregressa, outros reinventam toda a roda. As temáticas se repetem, complementam-se. Por isso, podem ser lidos como livros únicos. Nessa leitura da escolha, caso o leitor opte por ler apenas o Jornal da Guerra contra os Taedos, terá ele um pequeno livro com a coerência possível de uma temática única, mas não garante a segurança de um romance do século XIX. Os principais capítulos são: Jornal da Guerra Contra os Taedos, Capítulos numerados: 1, 2, 3…, Projeto de Bestiário, Anotações sobre números e outros. Os nomes dos capítulos se repetem durante todo o não-livro de Manoel Carlos Karam, como esta frase neste parágrafo.

Um grande não-livro, mas nem tão grande assim

A metalinguagem é uma das ferramentas usadas pelo narrador (se é que possível usar o singular). Nos capítulos numerados, um dos narradores expõe suas escolhas: como deverá se chamar o personagem dessa história? Aqui, o livro é pensado e construído conforme é escrito.

A falta de enredo é latente: não se conta uma história, contam-se várias e nenhuma delas é suficiente. Num primeiro momento, essa profusão de narrativas, que desfocam o leitor e o conduz a um abismo, deixa o livro instigante. Como receptores das narrativas, queremos juntar os cacos, colocar sentido no mosaico. Ora os narradores (que também são vários) parecem nos dar um mapa confiável, ora nos colocam em um labirinto sem o fio de Ariadne.

De um escritor sem estilo

Em entrevista filmada ao programa Persona, Manoel Carlos Karam cita um amigo (do qual não aponta o nome, mas uma frase que poderia defini-lo) e que parafraseio aqui: “Quando pego o livro para ler, já sei que é o Karam, justamente por não ter ali um estilo”. O autor repete a frase com uma risada. Ao entrevistador, novamente, diz escrever sempre um pouco por dia. A sua ideia de literatura como experimentação, como jogo, faz com que, para cada livro, ele tenha de reescrever a própria biografia, as próprias obsessões. No caso de Pescoço Ladeado por Parafusos, não é diferente. Todos os seus livros podem ser entendidos como a coletânea de vários livros.

Capítulos numerados: 1, 2, 3...

Um narrador em terceira pessoa inicia uma investigação para descobrir como deverá ser o nome de um personagem, elencando características possíveis dadas a nomes distintos. Aqui, o tom metalinguístico é predominante. A narrativa se constrói enquanto é escrita, o narrador está cheio de dúvidas e espera saciá-las enquanto pensa sobre os nomes, como no capítulo de número 2

2. Se a escolha de prenome é difícil, pode-se cogitar que o indivíduo seja chamado pelo sobrenome. Oliveira seria inoportuno. Gonçalves, resumindo o roteiro, trocaria o dia pela noite ou a noite pelo dia ou trocaria alguma outra coisa. Carvalho, pelo destino anunciado pelas cartas, nada feito.

Projeto de Bestiário

Aqui, para cada vez que aparece este capítulo, uma história distinta envolvendo os nomes pensados anteriormente é contada. Esses capítulos podem ser considerados pequenos contos. Lê-los por escolha única dará ao leitor a perspectiva de um livro de microcontos. Esse capítulo é, também, uma espécie de “teste de atuação”, como se o narrador estivesse testando os nomes anteriormente pensados em ações cotidianas – como esses personagens se comportariam?

Carlos parou junto à janela e falou olhando para fora. Anos e anos de experiência e apenas mais uma receita para não ficar sóbrio, disse baixinho. Guida ficou em silêncio. Carlos percebeu que ela não havia escutado. Deu as costas para a janela e repetiu: anos e anos de trabalho e apenas mais uma receita para não ficar sóbrio.

Um grande não-livro, mas nem tão grande assim

Assim diz Haroldo de Campos sobre Serafim Ponte Grande, mas ao Pescoço Ladeado por Parafusos podemos dizer o mesmo.

O familiar nos aparece como algo novo, desconhecido, se nós alterarmos as relações normais de sua apresentação por um “efeito de estranhamento”.

O teórico nos fala sobre o desnudamento do processo, já que o livro é um mostrar da própria feitura do livro. Ele cita Tristram Shandy como uma luz que demonstrou os automatismos do objeto livro, mudando a cara do mercado editorial assim como da literatura romanesca, já no século XVIII, por Laurence Sterne.

O Serafim, de Oswald de Andrade, o Tristram, de Sterne, assim como o Pescoço, de Karam, são livros que põem em discussão as suas próprias estruturas. Livros que falam de si mesmos – não apenas.

Colcha de retalhos

Pescoço Ladeado por Parafusos é híbrido, feito de colagens, como num quadro cubista. Filho mais do cinema do que da literatura, talvez. Um livro de prosa e de montagem. União de diferentes gêneros, de diferentes mídias, apesar de totalmente texto. Como bem assinala Haroldo de Campos

A colagem — e mesmo a montagem — sempre que trabalhem sobre um conjunto já constituído de utensílios e materiais, in-ventariando-os e remanipulando-lhes as funções primitivas, podem se enquadrar naquele tipo de atividade que Lévi-Strauss define como “bricolage” […] a qual, se é característica da “pensée sauvage”, não deixa de ter muito em comum com a lógica de tipo concreto, combinatória, do pensamento poético.

Capítulos numerados: 1, 2, 3…

O narrador dos capítulos numerados entende que o personagem principal é a junção de vários outros, como a criação do doutor Frankenstein. Aquele que tem o pescoço ladeado por parafusos.



quarta-feira, 2 de março de 2022

29) Tudo terminará como começou

O silêncio é um senhorzinho de muita idade. Tanta idade ele tem que chega a ser o mais velho senhor existente. Visto que o silêncio — como diria Arnaldo (não o Cézar Coelho) — foi a primeira coisa que existiu.

Esse senhorzinho tem nos dedos os mais variados calos, de todas as épocas, de todos os lugares. Tão consumido pelo tempo é o seu corpo que a mesma idade do tempo ele tem.

Segundo dados nem um pouco avançadíssimos de pesquisa, o silêncio anda tão fora de moda que já nem anda. Para ir daqui até ali, a bengala é de ótima serventia. Com a cautela herdeira da idade, o silêncio caminha atento para não se machucar com as quinas desavisadas, e usa um aparelhinho para escutar melhor. Resultado de uma vida inteira dedicada ao ouvir — esse verbo tão maltratado.

Sim, isso mesmo, o silêncio de que falo não é aquele sinônimo de ausência de som. O silêncio ouve, pois sabe a hora de se calar.

Breve amostra do silêncio: você está sentado em uma poltrona, lendo um livro de poemas, daqueles de arrebatar. Daí que você lê o último verso do melhor poema que aquele dia poderia ter lhe dado. Instaura-se um silêncio. Desse silêncio ouve-se a garganta engolindo em seco. A cabeça a borbulhar o indizível. Você ouve barulhos internos — do estômago?  —, barulhos externos — o carro passando na rua, a geladeira roncando —, barulhos que compõem o silêncio. Um silêncio impactante, tão estrondoso como a algazarra de um vulcão desperto. 

O senhorzinho silêncio anda tão fora de moda com o seu pulôver. Nada damos a ele. Nada parece ele merecer. Um E.T., de tão estranho que é. Tão anacrônico e desrespeitado. Desde a ascensão do Walkman até os dias do "Ligue o som" dos desesperados stories, o desrespeito só aumenta.

Tão fora de moda que o "ficar em silêncio" tem enlouquecido as pessoas. As pessoas se sentem solitárias em sua companhia. 

Breve amostra do medo do silêncio: você quer deitar-se, dormir o sono dos justos, mas o medo de ficar em silêncio a consome, quando deveria ser o sono a bater à porta. Decide por colocar um barulhinho enquanto o sono não vem, o barulhinho é melhor companhia do que o silêncio.

O silêncio se tornou uma companhia indesejada como fora o reflexo para Narciso. Caso o silêncio tente dar os ouvidos por aí, há quem se reunirá em passeatas contra esse intruso ou apenas será, em contrapartida, um fiel defensor do barulho em toda e qualquer instância.

O silêncio parece uma planta que cresce do concreto, tentando resistir apesar de todo o entorno se vestir do contrário. Uma planta bonita, de verde vívido, mas dia a dia retirada sob a acusação de ser uma erva daninha.

Quando estamos na companhia do silêncio, podemos nos ouvir. É o que menos queremos no entanto. Esse senhorzinho ensina a ouvir o outro assim como a nós. No momento em que tudo parece gritar por atenção, o silêncio para, escuta e pensa naquilo que escuta.

O silêncio é generoso como são aqueles que sabem, apesar da dificuldade em caminhar, apesar da idade, apesar de todo o burburinho, que tudo terminará como começou.

Em silêncio.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

28) Um brinde

Há alguns milhares de anos (na real? acho que um pouco mais de dois), os gregos entendiam que o amor erótico era um dos remédios contra a morte. Eles davam o nome de phármakon a esse comprimidinho. Esse amor era cantado nas líricas – poemas recitados ao som do instrumento lira.

Não é que se você trepasse como hamster sem rodinha enganaria a senhora das foices. Você só aplicaria uma dose de Alzheimer na mais velha conhecida nossa, e ela te deixaria para uma outra hora, quando lembrasse. Ou seja, você espantaria a indesejada por um tempo, aquela evangelhista ferrenha do fim dos dias, e finalmente viveria a plenitude, o prazer em essência.

Um amorzinho era um remédio (e acredito que ainda seja) daqueles, mas outras coisas entravam na lista que Dionísio esculpira numa pedra da marca Tilibra. Por exemplo... a celebração!

A celebração era a síntese, o próprio phármakon, o remédio por excelência, fosse amando, cantando, bebendo, recitando versos ao som de lira ou em linhas afiadas de um rap – acho que não naquela época. Lembramos que Hermes até tinha um flow invejado, passava uma mensagem que era uma beleza, sempre se baseando ali na métrica de Homero, mas rap, rap mesmo, ainda não.

Na década de 70 da nossa era o lema "Sexo, Drogas e Rock and Roll" ficou famoso. Na Grécia do século V antes de Cristo, o lema poderia ter sido "Afrodite, Dionísio e As Musas".

Era preciso celebrar o amor, o vinho, a arte, o sexo, a embriaguez, a beleza. Não apenas a virilidade e a guerra mereciam destaque, como faziam Aquiles e seus amigos postadores de bíceps dos stories – conhecidos como cantos da Ilíada. E, claro, um bíceps que eu gostaria de ter, porque esses bracinhos meus aqui são a própria lira.  

Nos dias da era (ainda) cristã, as pessoas vão a bares, festas regadas ao melhor do álcool, assistem ao Campeonato Brasileiro. E tem a celebração para o time dos que preferem uma aguinha, assistir a um jogo de futebol com suquinho, rir com Friends, ler poemas. Ou cantar o amor e a sorte de estar vivo em letras de música, em filmes com a Drew Barrymore, em casos românticos clichês das novelas, ou uma volta de bicicleta para ver a cidade. 

Como diria o nosso russo camarada, alcunhado por Dostinha, e Dostoiévski para os acadêmicos, a beleza salvará o mundo. 

Para os líricos gregos, porém, era preciso "usar" de tudo com temperança, já que comprimidinhos traziam efeitos colaterais terríveis se usados com exageros, pois phármakon significava tanto a saúde como a doença.

Resumo da lírica: não se vivia apenas de vinho, sexo e arte. Não se vivia uma vida inteira dedicada aos banquetes. Mas sem banquete, sem celebração, não tinha por que viver.

Para lembrar de estar vivo pode ser a mistura do caos e da sanidade, a mesa com cerveja e com suco, com água e com vinho, o pote de tinta despejado num quadro branco como fazia Pollock – que era um beberrão daqueles.  

Novamente, porém, não interessa: não é a embriaguez que faz a diferença, nem mesmo a sobriedade.

O que faz a diferença é o brinde.

domingo, 6 de fevereiro de 2022

27) Acabou o mistério?

Pode ser que o mistério tenha definitivamente desaparecido e nem mesmo Hercule Poirot, com suas habilidades indiscutíveis, possa encontrá-lo.

Assim como não é mais possível trombar com um tigre-dentes-de-sabre na avenida Afonso Pena. Triste. E se o mistério estiver na cama de um hospital à espera do último suspiro? Quem vai atrás de salvá-lo da extinção? Parece que o Batman anda ocupado com as suas finanças.

Tudo isso virou assunto que não se toca, coisa do passado, poeira do tempo, máquina de escrever, relacionamentos duradouros, Cruzeiro na série A. Não é de hoje que esse ser que só mostra a metade do rosto tem vivido os seus finalmentes (e ainda bem que são vários). Não sei quando começou a derrocada do quase inominável. Convenhamos, quando não citamos o seu nome, alimentamos ainda mais o mistério.

Eu, como detetive freelancer, tenho algumas pistas que levarão à descoberta do fim do mistério. Abrindo meu caderno Tilibra com capa de surfista, eis as três pistas tingidas à caneta Bic:

Pista Número 1 - Mania de explicação da Internet.

Você sabe quem foi Hercule Poirot? O belga Hercule Poirot ou simplesmente Poirot foi um grande detetive fictício e protagonista da maioria dos livros de Agatha Christie, a dama do crime. Fonte: Wikipédia, levemente alterada.

Se fosse só até aí, tudo bem, só que de repente aparece um vídeo de 14 horas a dissecar (uma palavra importante) todas as teorias possíveis que cercam a vida e a morte de Hercule Poirot, com cento e dezesseis entrevistas com especialistas da literatura de Agatha e mais o Metaforando, trajando o seu elegante terno azul-marinho, analisando os minuciosos movimentos da rainha do crime e tirando dezenove conclusões ao quadrado do que comia, assistia, onde vivia, que jornal lia, e qual a bolinha de gude preferida de Herculinho, quando este tinha apenas seis anos de idade. E você já sabe isso tudo, sem ter lido um livrinho da Agatha Christie.

Não há mistério que sobreviva. 

Pista Número 2 - Tudo é mostrado o tempo todo.

Acordei, deixa eu mostrar meu rosto sem maquiagem para provar que sou linda também sem maquiagem. Clique. Esse café da manhã tá dos deuses e muito fitness com essa granola de protagonista. Clique. Hora de trabalhar. Deixa eu mostrar meu macbook com a setinha do mouse sobre o botão de enviar do e-mail que enviarei para o meu chefe em Orlando. Clique. E agora bateu uma fome de arroz e feijão, mas sushi cai melhor com o foco correto na minha mão ao segurar o hashi com a mesma habilidade que Bruce Lee manuseava um nunchaku.

Não há mistério que não morra de inanição. 

Pista Número 3 - Nem pode ser sumido mais.

O canto Belchior, autor de clássicos como Rapaz latino-americano, Divina comédia humana e Sujeito de sorte, reaparece no Uruguai depois de anos sumido.

“Eu sou apenas um velhinho laaaatino-americano seeeem dinheiro no banco, com amigos importaaaantes e intercâmbio no exterioooor." 

Com o fim do mistério, acho melhor a nova edição do Aurélio vir sem essa palavra, para que a gente não se iluda que ele, sempre, há de pintar por aí.

Fiquemos apenas com o que ele um dia chegou a ser, como um melhor amigo que já não é mais. Ou com aquela música que vai tocar (ou não) na rádio e você precisa estar com a fita k7 em mãos para gravar. Diferente do status do MSN que já dizia se você estava feliz, triste ou ouvinte de Nirvana com 35 graus de sol – que é bem parecido com triste.

Fiquemos com aquele filme de terror realmente aterrorizante, e que apenas as pessoas que conheciam o valor do mistério te falariam as palavras exatas sobre ele, "Não vou contar nada. Só assiste, cara!". Bem diferente dos cinco trailers que passam todas as cenas do filme de forma embaralhada, e que você de frente para o computador diz: "Já sei tudo, nem vou assistir. Só fazer uma pipoquinha. Tô com uma fooome."

Com uma certa tristeza, confesso que o mistério está próximo do fim, e como disse lá em cima, à espera de seu último suspiro numa cama de hospital. Triste.

Mas... se ele está em um hospital, em qual? E se este meu diagnóstico de detetive freelancer estiver errado? Não sei as respostas para essas perguntas. Sou mal pago. Não sou Poirot. 

No entanto, uma coisa fica: o mistério.


sexta-feira, 23 de julho de 2021

26) Aulas Inesquecíveis

Algumas aulas são chatas, aborrecidas e apenas tempo perdido, enquanto outras tecem o improvável e podem mudar a vida de alguém.

À minha cabeça surgem duas aulas inesquecíveis. A primeira foi uma aula de geografia, no sexto ano do fundamental, lecionada pelo alto e esguio professor Kléber, o Klebão. Ele era um sujeito ríspido em sala, de cortadas ferozes feito atacante de vôlei verbal, quase indefensável. 

Uma vez, porém, Klebão pediu que fizéssemos um "para casa", uma redação que discorresse (lembro dessa palavra em especial) sobre a chegada dos portugas neste território ainda não chamado Brasil.

Fiz o para casa e o apresentei na aula seguinte. Depois disso nunca mais me esqueci dele, do Klebão, e já com treze anos passei a entender o que eu, Diogo, faria aqui neste mundo, e devo parte dessa descoberta ao ríspido professor de Geografia. Conto sobre esse dia em um texto que se chama Klebão, o pontapé narrativo.

A outra aula inesquecível aconteceu na graduação em Letras, lá em 2011. Uma professora, de maneira muito simples, mudou meu jeito de olhar pinturas e ler poesia. Foi a professora Myriam. Na primeira aula de teoria literária II, ela colocou sobre a parede branca um quadro do Paul Klee e posteriormente algumas estrofes do Barco Ébrio, de Rimbaud.

Primeiro ela pediu que olhássemos, durante um tempo, para o quadro de Klee. Se quiser fazer isso também, seria legal.

 
E ali nós ficamos. Olhando cada quadradinho, cada cor desse quadro, que tem um nome lindo: Som Antigo. Em seguida ela pediu que lêssemos algumas estrofes do Barco Ébrio, abaixo com tradução de Ivo Barroso.

Livre, a fumar, surgindo entre as brumas violetas,
Eu que rasguei os rúbeos céus qual muro hostil
Que ostentasse, iguaria invulgar aos bons poetas,
Os líquenes do sol e as excreções do anil;

Que ia, de lúnulas elétricas manchado,
Prancha doida, a arrastar hipocampos servis,
Quando o verão baixava a golpes de cajado
O céu ultramarino em árdegos funis.

Depois Myriam se levantou de sua cadeira e pediu que comparássemos o quadro com o poema, quais semelhanças existiam entre eles?

Daí que eu não conseguia enxergar nada que pudesse se coincidir. Até porque não entendia muito bem o que Rimbauzinho queria dizer.

Aos poucos, bem nas miudezas, a professora foi nos explicando. Primeiro a apontar a estrutura do quadro: os quadrados menores dentro de quadrados maiores, e fazendo uma ligação direta com os conjuntos de quatro versos que seguiam uma métrica dentro das estrofes.

Depois apontou aqueles quadradinhos que se repetiam em determinados pontos, e fez uma ligação com as rimas e as sílabas poéticas do poema*.

Aí a professora voltava para o quadro de Klee e apontava nele as diferentes tonalidades, e ia para o poema e mostrava as cores em excesso: "brumas violetas, rúbeos céus, excreções do anil". Além de todas as imagens que também eram muito coloridas: "Quando o verão baixava a golpes de cajado", enfim, uma chuva de sentidos, imagens e sons (esse poema dá água na boca).

Essa aula, no fundo bem simples, fez a minha cabeça explodir e dar um salto a mais. Fez eu perder o preconceito com poemas rimados e de séculos que não eram o XX, fez eu descobrir vários outros universos, desatarraxar parafusos mentais.

Depois dessa aula comecei a ler poesia bem devagar, passando por todas as "cores" possíveis de um poema e, por extensão, as cores do mundo.


*Resumindo, sílabas poéticas são as fortes e as fracas: em "QUAN-do-o veRÃO", as tônicas são fortes, e as fracas geralmente se ligam a outras fracas, então você conta "do" + "o" como uma sílaba somente, e se o verso terminar em sílaba fraca, você não a conta. Dessa forma Ivo traduziu os poemas em dodecassílabos, versos com doze sílabas poéticas. Posso estar falando errado, qualquer coisa vocês me corrijam. 

segunda-feira, 21 de junho de 2021

25) Nação Zumbi e A Ficção Científica

Sempre gostei de assistir a filmes de ficção científica desde criança, mas só comecei a ler FC depois dos 18 anos, e isso eu devo à Nação Zumbi, que sempre flertou com a literatura especulativa em seus discos. A primeira vez que escutei e vi a banda foi pela televisão no programa Bem Brasil. Curiosamente eles estavam divulgando o então novo disco “Futura”, de 2005. Comecei atraído pelas percussões da banda e depois fui atrás da discografia, foi assim que entendi que aquela tinha sido a banda de Chico Science (olha o codinome da figura). Comprei os cds que existiam na época e logo me atraíram as discussões filosófico-científicas que estavam presentes nas letras, desde os tempos em que os jornalistas chamavam aquele movimento, em Recife, de Mangue Beat. Depois de ouvir o primeiro disco, o segundo e um disco de homenagens a Chico, gravado depois de sua morte, caiu em minhas mãos o Rádio S.A.M.B.A, ou Serviço Ambulante de Afrociberdelia, em que os integrantes assinavam as composições com seus pseudônimos: Jackson Bandeiro e Pixel 3000, entre outros. Esses temas futuristas misturados à brasilidade me fizeram ainda mais fã da banda, e o “Futura”, aquele que apresentaram na tevê, permanece como o meu disco preferido. 

As letras de Dü Peixe continuam a falar de coisas que gosto e mexem com a minha cabeça, além de seu jeito único de cantar e criar melodias muito simples. Sem contar que consegui, em 2006, ir a um show aqui em Beagá, o primeiro deles, e foi uma das melhores experiências da minha vida. Pois bem, a partir daí comecei a ler ficção científica, tirando todo o preconceito que eu tinha com o gênero na literatura - era óbvio que sentia isso porque não conhecia a literatura de ficção científica, então eu só imaginava o que poderia ser, baseado nas minhas experiências vendo filmes que, na maioria das vezes, diluíam toda a carga filosófica, sociológica e antropológica da FC em cenas de ação e efeitos especiais.



quinta-feira, 10 de junho de 2021

24) A Morte e o Meteoro

Depois de ir ao lançamento do livro aqui em Beagá, em 2019, e enfrentar a leitura sem muito entusiasmo da primeira vez, acabei de ler A Morte e o Meteoro, de Joca Reiners Terron, semana passada, em pequenas rajadas, assim como o escritor diz escrever. O livro conta a história de Boaventura, um indigenista aventureiro e sua missão para exilar os últimos cinquenta indígenas do Brasil, os Kaajapukugi, ameaçados de extinção depois da destruição da Amazônia. 

Eles serão transferidos ao estado de Oaxaca, no México. O livro é dividido em quatro capítulos, com o tempo cronológico tendo a consistência de uma gosma, em que passado e futuro se mesclam em um presente atemporal (louco, não?), característica que encontra eco no pensamento dos Kaajapukugi sobre a existência e a origem do mundo. A narração do livro fica por conta do substituto de Boaventura, já que este último morreu de forma misteriosa no decorrer da missão. Conforme a história é contada, somos envolvidos em uma trama que revela tensões, motivações e conspirações nada agradáveis em relação ao exílio dos Kaajapukugi. Indico, até porque aqui só escrevo sobre o que gosto. 

sexta-feira, 14 de maio de 2021

23) O Primeiro Sebo do Brasil


Eis que você, tão distraído(a) como os cachorrinhos diante da televisão suculenta, cai aqui. E descobre, meio à toa, qual foi a primeira livraria de livros usados do Brasil. Foi a casa do Livro Azul, logo ali na rua do Ouvidor, número 139, no Rio de Janeiro, em 1828. Quem inventou a extravagância e tomava conta da lojinha era o francês Albin Jourdan. Esse Albin Jourdan - ou cá entre nós, Jordinha - sacando de qual é que era o movimento da rua - tudo o olho da cara -, começou a fazer o contrário, a vender tudo baratinho. Não só. Jordinha trocava e alugava livro pra geral. E foi aí que o negócio fez como dinamite: bombou! O que se conta é que Jordinha, depois de velhinho, acabou ficando cego e quase surdo. Além de usar uma buzina para ouvir melhor, contratou dois ajudantes - que não ajudavam muito. Jordinha, então, sempre se levanta, colocava a buzina no ouvido e atendia o pessoal. E encontrava os livros solicitados tão facilmente como se a livraria fosse apenas mais um cômodo de seu cérebro. A Casa do Livro Azul - como é de praxe das livrarias - melhorou o mundo até 1850.

terça-feira, 11 de maio de 2021

22) Ter ideia ou não ter ideia, eis a questão

Melitta Bentz, a inventora do filtro de café

Os verbos "descobrir" e "inventar" têm a mesma raíz latina: inventio, “achado", "descoberta".

Descobrir é então inventar e inventar é então descobrir.

Segundo alguns, toda criação parte de uma ideia. Será?

É verdade que a criação pode ser iluminada por uma fonte de luz direta, mas costuma curtir mais a natureza difusa.

A ideia da ideia de ter ideia prolifera como formigas em açúcar abandonado, principalmente em manuais de arte ou cursos EAD com enormes descontos para os 50 primeiros inscritos. 

Durante muitos anos (nem tantos, na real) acreditei que só escreveria um texto, faria uma música ou desenharia algo se tivesse antes uma ideia; de preferência das boas, daquelas que mudam o mundo, nosso jeito de ser, nossa produção, em que teremos finalmente encontrado a mina de ouro da criatividade, a manifestação viva da pedra filosofal, ou o Santo Graal da invenção.

A grande ideia existe, mas você não precisa dela. A pequena ideia já serve. Melhor do que isso, não ter ideia nenhuma serve mais ainda.

Acontece de ficarmos à espera de um despertar, uma iluminação dos gurus. Às vezes, ela vem. É luminosa, cheia de vida. A mente é encoberta por uma bolha de realidade em que tudo então poderá ser resolvido. Você faz planos, estrutura mentalmente aquela primeira intenção, pensa no investimento (de grana e energia) que terá de fazer, nas pessoas envolvidas, no tempo para a conclusão; pensa no resultado, em pessoas recebendo aquele tesouro, nos trabalhos posteriores, nas entrevistas em programas de tevê e internet, na lavada de cara daquele conhecido que nunca acreditou em você. Enfim, uma tempestade cerebral de tirar não só o cavalinho da chuva, mas o sedan prateado 2.0 e a barraquinha de cachorro-quente.

Até que você desiste de tudo ainda no sofá, porque a ideia cresceu demais, e você... é só alguém sentado no sofá.

Talvez, antes de pensar em como tirar uma foto, apenas ligue a câmera e tire uma foto. Talvez, antes de pensar naquele texto a la Hilda Hilst, comece a escrever qualquer coisa no guardanapo do bar, no papel sulfite ralinho e cheio de pautas. Talvez, antes de pensar naquele curta que vai mudar a cara dos festivais de cinema nos próximos vinte anos, desenhe sem ter a menor ideia do que está fazendo, apenas uma linha depois da outra. Tire a coberta do pensamento: descubra.

Quem sabe essa primeira foto não te dê uma partida, um trajeto, ou melhor, uma chegada: aquela fotografia já pronta, sem antes ter imaginado a sua existência. Quem sabe esse texto sem pé nem cabeça crie um tronco, que dele crescem membros, que surgem olhos, que gera um personagem, um história, um mundo? Quem sabe esse desenho não se desdobre em uma cena, um diálogo, ou apenas um desenho mesmo, e só. Tá pronto. 

Uma vez, o pintor Edgar Degas disse ao poeta Mallarmé que gostaria de escrever poesias, pois ele tinha muitas ideias para poemas. E foi aí que Mallarmé respondeu mais ou menos assim: meu amigo Edgar, puxa essa cadeira aí, senta aqui um pouquinho. Escuta só. Poemas não são feitos de ideias, mas de palavras.

segunda-feira, 26 de abril de 2021

21) O Chute Final

A esfera alva sobre o círculo branco. Os pés do italiano Roberto Baggio procuram se afastar da bola. Baggio suspende a cabeça para encarar o problema e descansa as mãos ao redor da barriga. Respira. Ante seus olhos, o goleiro, um tal de Taffarel.

Roberto Baggio quer atravessar o recém descoberto pegador de pênaltis — aquele jogador irregular do Reggiana, time modesto do mesmo país onde Baggio é sinônimo de ídolo. 

Já o menino, com seus 7 anos de idade, está sentado no chão de ardósia da sala de casa. Acompanha pela tevê de '14 e bombril na antena, junto dos irmãos e pais, a famosa disputa de pênaltis entre Brasil e Itália. É, claro, a final da Copa do Mundo de 1994, realizada no Rose Bowl, nos EUA.

O menino é morador da emergente cidade de Divinópolis, interior de Minas Gerais, no Brasil. Ele nada mais ama do que o futebol, e seu coração confirma o amor quando seus olhos nem piscam diante da tela chapiscada. Dali em diante o menino se tornará um fanático pela pelota. Fará campeonatos entre seus botões, escalará o desconhecido Ponte Preta de cor e seus aniversários terão balões coloridos como as cores do seu time do coração. 

Baggio precisa colocar a bola em um lugar entre o goleiro e os postes de metal. Um lugar que faça as redes balançarem assim como os torcedores do seu time. Um lugar que não transforme Taffarel em heroi — o mesmo goleiro insolente que já agarrou um pênalti mal batido de Massaro minutos antes. Roberto Baggio não pensa no menino. Por que o então maior jogador do mundo, ganhador da bola de Ouro do ano anterior, pensaria? Mas sabe que existem milhões à espera de seu derradeiro chute, seja em Divinópolis, na cidade de Roma ou nas cadeiras numeradas do estádio americano, o mesmo coliseu em que ele, Baggio, se prepara para se tornar ídolo ou — como uma moeda de duas caras lançadas ao ar pelo juiz — o vilão. 

O menino rói as unhas de ansiedade. As unhas de Baggio estão intactas; ele apenas se concentra no objetivo, aquilo que os ingleses não à toa deram o nome de Goal.

Como um ser onisciente, vindo do alto-falante da CCE, uma voz meio aveludada e rouca narra com emoção a seguinte frase: "...vai partir... ...VAI QUE É SUA, TAFFAREEEL! PARTIU! BATEU!..."

Segundos antes, Baggio corre até a bola. Taffarel se adianta, dando um passo e pulando para frente. Baggio chuta. Taffarel cai. A bola sobrevoa acima do travessão. A narração completa: "...CABÔÔÔ! CABÔÔÔ! ACABÔÔÔÔÔ! É TETRAAA! É TETRAAA! O BRASIIIIIIL É TETRA CAMPEÃÃO MUNDIAAAL DE FUTEBOOOL! O BRASIIIIL, VIIINTE QUATRO ANOS DEPOOOIS, É TETRA CAMPEÃO MUNDIAAAL DE FUTEBOOL!...".

Roberto Baggio não chegou a ouvir aquela frase. Depois do chute final, apenas deixou o queixo cair sobre o peito, como um Dadá Maravilha às avessas, sem encontrar a bola que justificasse o gesto. Não ouviu aquela frase gorda e emotiva que, para ele, seria um tremendo fastio. O que seus ouvidos desejaram? Bloquear, somente bloquear, como uma barreira feita por Pagliuca, a festa de arromba dos jogadores amarelos.

Porém, mais impactante do que a frase esfomeada do narrador brasileiro teria sido, ou o alto-falante da CCE quase a estourar, ou os abraços e as inúmeras reprises daquele chute em todos os telões do mundo; mais impactante do que o menino, agora homem, e com os olhos marejados, a escrever as lembranças daquele dia, foi e ainda é... o zumbido. O zumbido ainda atormenta Roberto Baggio. E já são quase trinta anos, agudo e penetrante, o zumbido em uniforme de insônia, vestido de entrevista, documentários, lembranças escabrosas.

Já o menino, mesmo com os problemas da vida adulta, nenhum zumbido capta. Seus pensamentos tão somente repetem: "É TETRA!". 

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

20) Caminhar não leva a lugar nenhum

É justamente a infinitude que nos interessa ao caminhar. Não ter um destino: alguém levantando uma placa de papelão com o nosso nome rabiscado em meio a um aeroporto infestado de gente. Não ter uma chegada: um pódio dividido em três categorias de vencedores. Não ter um porto: um solo de areia, palmeiras e vendedores de coco que nos atraquem. Caminhar – desculpe a indecência – não leva a lugar nenhum.

Caminhar elide sujeito e objeto. (Talvez algum poeta tenha dito algo parecido). Caminhar é (atente ao tempo verbal) presença. Pelos menos o caminhar de que falo. Aquele sem dívidas a serem quitadas com a barriguinha. Sem pódio de chegada ou beijo de namorada. (Sim, um letrista falou). Caminhar por caminhar, para se reconhecer.

Comecei a manifestar esse caminhar quando ainda o encarava como uma maneira de economizar o dinheiro da passagem de ônibus de ida à escola para comprar cds do Pearl Jam; banda que me fascinava na adolescência e que fazia de seus discos obras-primas gráficas. Ia do Caiçara (onde ficava a escola) até o Serrano (onde eu morava) apenas guiado pelos meus pés; e, sim, tinha um destino. Até dois. Chegar no Serrano vivo a cada dia. Depois de uma semana, uma semana e meia, ter o dinheiro para comprar o cd.

Depois esse caminhar começou a surgir em momentos em que eu precisava conversar com um amigo. Aí eu convidava alguém, nós comprávamos um Chapinha e dá-lhe pernas até a Lagoa da Pampulha. Apesar de parar na Lagoa, não era em si um destino, um objetivo. O objetivo era a conversa. Tanto a caminhada como a lagoa eram trajetos.

Até que (já naquela época) as pessoas não tinham mais tempo e nem sempre havia um amigo, e aí o trajeto se transformava em companhia. E o destino, o objetivo já não tinha importância. A importância morava nos pés em movimento. Nos olhos a verem as coisas. Nas narinas a sentirem o cheiro enquanto ouvidos percebiam movimentos, sons próximos, sons distantes.

Tanto feliz como triste, caminhava. Uma vez vi um documentário na tevê aberta sobre andarilhos. Como é de costume desses programas, metade de tela era de entrevistas com os andarilhos, metade com "especialistas". E os especialistas diziam que quem tinha como objetivo na vida o andar, era alguém sem rumo. De início pensei que eu não tinha rumo nada vida e cheguei a comentar com uma amiga essa descoberta. Por fim tive certeza de que não tinha rumo na vida... e tudo bem.

O "tudo bem" surgiu com mais força depois de descobrir a meditação andando. Para os budistas da escola zen (ou chan, se for chinesa) o caminhar sem meta é uma das práticas meditativas. Eles praticam em uma sala, e dão o nome de kinhin, mas também praticam em ambientes externos. E nos últimos dias decidi praticá-la novamente. Para isso tirei da estante um livro do Thich Nhat Hanh, Meditação Andando. Desse monge, na Netflix, até um mês atrás tinha um documentário sobre seu mosteiro, o Plum Village, na França. É uma pena que tiraram; pelo menos consegui assistir três vezes.

A meditação andando contempla esse aspecto de não ter meta enquanto se caminha. Não querer destino. Essa nossa obsessão por resultados traz também muitas frustrações. Porque, simplesmente, não podemos ter tudo o que desejamos. Quase sempre não chegaremos ao pódio. O real então se mostra não é nem no começo, nem no fim, mas no meio da... (eu sei, eu sei que você já conhece essa frase, deixa eu só terminar) ...travessia.

domingo, 10 de janeiro de 2021

19) Três Corações

Prisão de Alcatraz

Há coração escondido pelas costelas como se estas fossem grades de uma prisão de segurança máxima.

Há coração menos preocupado, que sai pelo buraco da fechadura enquanto a chave da porta se perdeu nos bolsos daquele short no fundo do cesto.

Há coração que deixa a porta escancarada e se entrega entusiasmado pelo mundo como se visitasse diariamente as pontes do rio Sena.

O primeiro só sai uma horinha por dia, para tomar banho de sol. Se segura ao máximo para não falar o que pensa, afinal pode ser retalhado. E, por esconder os desejos na garganta, está sempre com azia, com dores no estômago, tristezas sem porquês e olhando para os próprios defeitos como se fossem muros gigantes protegidos por arames farpados. 

O segundo bate forte quando o narrador grita gol, mas não tão forte que vá fazer o coração vizinho bater o interfone ou aquele gancho para a polícia. Derrama seu amor por pessoas próximas, os amigos e as amigas, namorados e namoradas; pelos pais ainda derrama amor em conta-gotas, em datas comemorativas, e acredita que a queimação do estômago seja herdeira do excesso de pernil comido no natal.

O terceiro bate forte tanto na arquibancada de um campeonato de escola quanto na primeira fila de um show da Ivete. Tem sempre uma história para contar na ceia e nunca abaixa os olhos para ver se está escapando pelas pernas. Não reclama de dor no estômago, porque nunca teve, e se pergunta "o que é estomazil?", deixando todos à mesa com a goela em chamas, desacreditados que ainda existam seres que não deram nenhuma bolinha num comprimido desses.

Tem coração que consegue dar uma voltinha no quarteirão, mas de tornozeleira. Vai até a esquina mais próxima, olha para todos os cantos, assustado, com medo de que o descubram fugindo, volta rápido para dentro de si, passa a noite inteira com insônia, dorme duas horinhas e acorda amedrontado com a autocobrança enroscada na própria canela.

Tem coração que dorme uma noite de sono mais ou menos tranquila, e só começa a bater forte quando tem sonhos com os pais em diversas situações, tanto ruins como boas. Acorda com a ajuda do despertador entre 9 e 10 da manhã, ainda sonolento, e chega quase sempre atrasado ao trabalho, com as desculpas querendo sair pela boca, mas controlada no centro da garganta.

Tem coração que dorme só de encostar a orelha no travesseiro. Acorda às oito horas, longe de qualquer ressaca moral, pronto para ir ao psicólogo uma única e última vez, só por curiosidade, já que pensou seguir a profissão de psicanalista – afinal gosta de gente. 

quinta-feira, 9 de julho de 2020

18) Suponha que...

Suponha que você more no bairro Serrano, que fica na região noroeste de Belo Horizonte, coladinho à Contagem, bem distante do centro de Beagá, e tenha um irmão mais velho.

Este irmão gosta de ler. Bem e-v-e-n-t-u-a-l-m-e-n-t-e, mas gosta. E de quinze em quinze dias ele leva um livro para casa, a mesma casa em que você mora.

Suponha também que você goste de ler, mas suponha que, diferente de “eventualmente”, goste bastante de ler. E até aí você sabe que existem livros. Eles ficam ou nas livrarias ou na biblioteca da sua escola (trancada na hora do intervalo). Na sua casa não costuma ter livros.

Moradores do bairro Serrano, na Região da Pampulha, reclamam de ...
Mítico Bairro Serrano visto de cima.
Aí você pergunta para o seu irmão onde é que ele conseguiu aquele livro do Stephen King. Ele responde que foi lá no Centro Cultural Pampulha, no Urca.

Você sobrepõe a suposição (logo, muito acima) e se certifica que o Urca, como Contagem está para Belo Horizonte, fica do ladinho do bairro Serrano; é descer a avenida principal até chegar na ponte do córrego e atravessá-la. Melhor do que tudo isso, você já tem 18 anos, portanto, já pode criar uma ficha (só sua) na biblioteca do CCP.

De identidade e comprovante de residência (a mesma residência do seu irmão) em mãos, você desce a avenida, caminhando até a ponte, atravessa a ponte, sobe um pequeno morro (pequeno para mineiro) e se depara com o Centro Cultural. Ali no início da aparição, logo depois da porta de metal e vidro, diante dos seus olhos contentes: a biblioteca.

Mítico Centro Cultural Pampulha, no Urca.
Três ou quatro prateleiras pequenas, duas mesas baixas de centro e uma mesa alta com uma pessoa sentada em uma cadeira (você se lembra) que deveria ser (e era) a bibliotecária.

Vim fazer a carteirinha pra pegar livro emprestado, você diz.

Carteirinha não tem, é apenas um registro num computador branco-amarelado de monitor gigantesco (afinal estamos no início dos anos 2000), mas serve.

Pode sentar, deixa eu ver aqui seus documentos, responde a bibliotecária.

Você se senta e se sente importante durante um tempo. Responde à bibliotecária as dúvidas dela, como o CEP correto, o número do telefone fixo. Em menos de dez minutos, quiçá menos de sete, você tem um registro. Melhor do que isso, já pode levar livros para casa.

Suponha que naquela época você ainda estivesse descobrindo o que ler, os autores que fariam a sua cabeça, os gêneros textuais que melhor narrariam seus desejos, os mundos que perfeitamente se encaixariam no seu mundo. Para alimentar todo esse universo, a biblioteca do CCP, bem pertinho da sua casa, era mais do que uma guarnição, era um prato cheio. Do típico arroz e feijão ao excêntrico sushi, quer dizer, de autores já conhecidos e amados por você, como Luís Fernando Veríssimo, Rubem Fonseca, Henfil e companhia, até aqueles que você se apaixonaria, como Hilda Hilst, Borges, Kafka etc.

Dessas experiências de leitura, de senso de comunidade, de cultura compartilhada, de trânsito de um bairro a outro, de visões e aprendizados, de saber, e esse saber como significado de “existem bibliotecas além da biblioteca da minha escola”, levaria você a frequentar o CCP de forma assídua, mas o anexo da Biblioteca Luiz de Bessa também, além das dezenas de bibliotecas da UFMG, do MIS Santa Tereza.

E em qualquer lugar que você venha a morar em Belo Horizonte, depois de já ter dado uma voltinha para conhecer o bairro, tomar um sorvete e sentar na praça, você vai se perguntar: será que tem uma biblioteca por aqui?

Suponha que Borges uma vez teria dito que o paraíso seria uma biblioteca. Suponha mais uma vez, então, que o paraíso fica logo aqui, na Terra, na rua Expedicionário Paulo de Souza ou na Rua da Bahia ou na rua Mármore ou melhor…

Nem suponha.